O Trágico do Estado Pós-colonial.pdf - Estudo Geral
O Trágico do Estado Pós-colonial.pdf - Estudo Geral
O Trágico do Estado Pós-colonial.pdf - Estudo Geral
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Nos <strong>do</strong>is Jaime Bunda, a força trágica que pesa na vida de algumas personagens e<br />
que as leva para um desfecho fatal, tem origem nas condições de vida <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> pós-<br />
<strong>colonial</strong>. Como vimos, em vários romances, Pepetela dedicou particular atenção à<br />
condição terrível <strong>do</strong>s subalternos na sociedade angolana em geral e luandense em<br />
particular, mulheres e homens que sofrem a fome, a <strong>do</strong>ença, a morte prematura por causa<br />
<strong>do</strong> descalabro nalguns segmentos da sociedade, da incúria das autoridades, 276 das<br />
consequências da ocupação <strong>colonial</strong>. 277 Neste contexto, o ser humano subalterniza<strong>do</strong><br />
parece um bonifrate nas mãos não de um oráculo (este é reserva<strong>do</strong> aos reis), nem de um<br />
grande feiticeiro (só trabalham, como em JB2, para a classe <strong>do</strong>minante), mas de uma força<br />
que de misteriosa não tem nada: a pobreza. No contexto em questão, só o subalterno<br />
parece sofrer o trágico e as suas consequências, pois o <strong>do</strong>minante, pela sua posição (dispõe<br />
<strong>do</strong> capital político assim como <strong>do</strong> capital financeiro), segura as redes <strong>do</strong> (seu) destino.<br />
Para dizê-lo de maneira mais prosaica, um Júlio Fininho vê o seu destino final<br />
traça<strong>do</strong> não nos astros ou na profecia da bruxa, mas antes numa condição social que o<br />
obriga a levar uma vida fora da lei, o que faz claramente dele o culpa<strong>do</strong> ideal aos olhos <strong>do</strong>s<br />
poderes judicial e político. Ele próprio tem consciência <strong>do</strong> papel determinante<br />
desempenha<strong>do</strong> pela sua situação social. A Maria Antónia, que lhe pergunta a razão pela<br />
qual escolheu uma carreira de ladrão, Júlio Fininho responde:<br />
Não consigo arranjar emprego. Procurei, procurei. Desmobilizaram-me, é verdade<br />
que a meu pedi<strong>do</strong>, mas nada fizeram para me colocarem. To<strong>do</strong>s esses anos no<br />
exército e não aprendi nenhuma profissão. […] Eu tinha de me safar de qualquer<br />
jeito. Foi esse que descobri. (Pepetela, 2003: 68)<br />
tragédies mais des romans. Le roman <strong>do</strong>it tendre ou tend naturellement à ressembler de plus en plus à la<br />
tragédie.» Georges Simenon. Des entretiens exemplaires (cd) Les grandes heures de Radio France.<br />
276 Esta denúncia romanesca das condições de vida <strong>do</strong>s mais pobres está presente na obra de outros autores<br />
angolanos. Penso aqui no romance de José Eduar<strong>do</strong> Agualusa, O vende<strong>do</strong>r de passa<strong>do</strong>s (2004). As críticas ao<br />
Esta<strong>do</strong> pós-<strong>colonial</strong> são numerosas (pobreza, indiferença das elites para com a miséria da população…). O<br />
facto de muitos andarem atrás de um passa<strong>do</strong> mais nobre, ou sem mancha, também é uma crítica forte à<br />
classe dirigente (ver, por exemplo, a carta que José Buchmann escreve a Felix Ventura: «… tão carente de um<br />
bom passa<strong>do</strong> andamos nós to<strong>do</strong>s, e em particular aqueles que por essa triste pátria nos desgovernam,<br />
governan<strong>do</strong>-se.» 131). O capítulo dedica<strong>do</strong> ao ministro que quer um passa<strong>do</strong> mais nobre, com nomes<br />
evocan<strong>do</strong> a resistência ao inimigo, é muito revela<strong>do</strong>r e irónico ao mesmo tempo (142 e seg.). Caposso<br />
evidencia a mesma vontade de construir um passa<strong>do</strong> glorioso, de inventar uma biografia: «Trabalhou e<br />
retrabalhou o discurso para criar o contrário de uma linha genealógica, isto é, a ausência de ascendentes»<br />
(Pepetela, 2005: 94). Só restava oficializar este passa<strong>do</strong> inventa<strong>do</strong>, o que consegue através de apoios e<br />
contacos, convencen<strong>do</strong> toda a gente da veracidade da sua história: obtém novo BI, cartão <strong>do</strong> MPLA,<br />
certifica<strong>do</strong> de habilitações: «Um passa<strong>do</strong> repinta<strong>do</strong> e agora absolutamente legal, sóli<strong>do</strong> e eterno» (Pepetela,<br />
2005: 105).<br />
277 Com a alusão ao caso semelhante ocorri<strong>do</strong> nos anos 1950, Pepetela não remete para uma espécie de<br />
destino implacável que, através de um oráculo (Raul Dândi), anuncia o terrível futuro de Júlio Fininho. Tratase<br />
antes de mostrar a continuidade na condição social <strong>do</strong> subalterno da colónia ao esta<strong>do</strong> pós-<strong>colonial</strong>, de<br />
denunciar como esta condição <strong>do</strong>mina e dirige de facto um destino nada mitológico.<br />
335