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O Trágico do Estado Pós-colonial.pdf - Estudo Geral

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desaparecimento da <strong>do</strong>r, pode muito bem fazê-lo por complacência ou até por puro prazer.<br />

173<br />

A esta dicotomia na instância de receção, acrescenta-se mais uma, a da relação entre<br />

o espetáculo de ficção (tragédia, filme, romance…) e uma representação ten<strong>do</strong> por<br />

referente um sofrimento real. Talvez uma das mais interessantes contribuições de Boltanski<br />

seja ter aponta<strong>do</strong> para a recorrente confusão entre ambos os tipos de representações no<br />

que tem a ver com a emoção suscitada junto <strong>do</strong> recetor: este experimentaria a piedade e o<br />

temor tanto numa como na outra. Acrescenta o sociólogo que o espeta<strong>do</strong>r (co)movi<strong>do</strong> à<br />

distância precisa de uma narrativa (aparentemente) objetiva <strong>do</strong> sofrimento de maneira a<br />

poder partilhar o seu sentimento com outros espeta<strong>do</strong>res, mas ao mesmo tempo esta<br />

narrativa tem de atiçar nele o sentimento da piedade (Boltanski, 1993: 38-42; 2000: 7). Esta<br />

dupla exigência encontra-se bem ilustrada no caso da vítima remota, o ser humano que<br />

temos pouca ou nenhuma hipótese de poder ajudar, pois neste caso, como o nota<br />

Boltanski, o espeta<strong>do</strong>r tenderá a apreender a narrativa da vítima de um mo<strong>do</strong> ficcional.<br />

É o que está em jogo, por exemplo, com os filmes sobre o genocídio no Ruanda: a<br />

escassez de imagens <strong>do</strong> genocídio real e a indiferença da maior parte <strong>do</strong>s Média e <strong>do</strong>s<br />

públicos no Ocidente originaram, alguns anos mais tarde, a vontade de representar os<br />

acontecimentos e, por conseguinte, de suscitar a piedade para com as vítimas na tripla<br />

distância <strong>do</strong> tempo, <strong>do</strong> espaço e da ficção. A partir deste ponto de vista, a discrepância<br />

entre um Hotel Ruanda, produção anglo-saxónica com grande êxito de audiências, e um<br />

Sometimes in April, filme produzi<strong>do</strong> como não-existente por um certo Norte, 174 situa-se,<br />

entre outros elementos, na gestão pelos realiza<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s elementos fundamentais da<br />

173 «Le critère de la parole publique ou de la conversation permet précisément de distinguer une façon de<br />

regarder orientée vers l’extérieur et animée par l’intention de voir cesser la souffrance […], d’une façon de<br />

regarder égoïste, tout absorbée par les états internes que le spectacle de la souffrance a suscités: fascination,<br />

horreur, intérêt, excitation, plaisir etc.» (Boltanski, 1993: 39). Esta reflexão sobre o sofrimento à distância ecoa<br />

na obra de Hans Blumenberg, Naufrágio com especta<strong>do</strong>r, dedica<strong>do</strong> ao lugar da metáfora marítima como mo<strong>do</strong><br />

privilegia<strong>do</strong> de descrição da presença humana no mun<strong>do</strong>. O mar, lugar <strong>do</strong> perigo, <strong>do</strong> sofrimento, da ausência<br />

<strong>do</strong> mal, torna-se o lugar por excelência <strong>do</strong> naufrágio. Segun<strong>do</strong> Blumenberg, o naufrágio coloca<br />

inevitavelmente a questão da presença <strong>do</strong> espeta<strong>do</strong>r à distância, distância que pode ser a da arte ou a <strong>do</strong><br />

prazer pessoal perante o naufrágio (Blumenberg, 1990: 25). Notava o pensa<strong>do</strong>r alemão que no decorrer <strong>do</strong><br />

século XVIII, a metáfora marítima cruzar-se-ia com a <strong>do</strong> teatro: em ambas o espeta<strong>do</strong>r observa o sofrimento<br />

de outrem numa distância ora ética ora estética. A passagem da beira-mar ao teatro na metáfora transforma o<br />

espeta<strong>do</strong>r, diz Blumenberg, pois ele é assim «priva<strong>do</strong> da dimensão moral, ele torna-se estético» (Blumenberg,<br />

1990: 58). É inevitável que as duas metáforas se tenham cruza<strong>do</strong> pois o teatro há muito é utiliza<strong>do</strong> na<br />

conceção da vida como palco, o que pressupõe justamente a presença de espeta<strong>do</strong>res. O naufrágio como<br />

metáfora torna-se então um drama ou uma tragédia com espeta<strong>do</strong>r.<br />

174 O filme de Raoul Peck, realiza<strong>do</strong>r haitiano, nunca arranjou distribui<strong>do</strong>ras na França e na Bélgica. Será que<br />

o conteú<strong>do</strong> crítico relativamente às responsabilidades destes <strong>do</strong>is países no genocídio explica a espécie de<br />

censura da qual foi vítima? Ou será por o filme não ter atores conheci<strong>do</strong>s (junto de um público ocidental<br />

claro) ou ainda por assumir a espessura histórica num guião forçosamente complexo?<br />

197

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