24.06.2013 Views

O Trágico do Estado Pós-colonial.pdf - Estudo Geral

O Trágico do Estado Pós-colonial.pdf - Estudo Geral

O Trágico do Estado Pós-colonial.pdf - Estudo Geral

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

chier!» diz o texto), para exercer o seu poder absoluto. É o que Garnier nota: «Le discours<br />

du guide ne s’adresse à aucun citoyen, il est une parole écrasante, qui n’a d’autre fonction<br />

que de marquer un territoire de <strong>do</strong>mination» (Garnier, 2009: 14).<br />

Neste contexto de terror e de opressão, os solda<strong>do</strong>s exercem uma pressão sobre os<br />

sujeitos que podemos interpretar como sen<strong>do</strong> uma força trágica, pois nela radica a origem<br />

<strong>do</strong> mal, da <strong>do</strong>r, da desgraça e, finalmente, da morte que assola a casa de Libertashio. Para o<br />

recetor, quan<strong>do</strong> Cavacha, um <strong>do</strong>s sucessivos dita<strong>do</strong>res torcionários, aconselha Ramana a<br />

não irritar um sargento porque ele é sargento «centimètre par centimètre, tranche après<br />

tranche» (Le deuxième soir), estas palavras ecoam como uma advertência relativamente ao<br />

exercício <strong>do</strong> poder sobre o corpo ameaça<strong>do</strong>.<br />

Porém, nesta peça como noutras de Tansi, surge um trágico de outra natureza, um<br />

trágico que aproxima, em parte, a obra <strong>do</strong> escritor <strong>do</strong> trágico entendi<strong>do</strong> no senti<strong>do</strong><br />

filosófico. Na segunda parte (Le deuxième soir), depois de serem condena<strong>do</strong>s, os membros da<br />

família de Libertashio não param de falar, como se tivessem me<strong>do</strong> <strong>do</strong> silêncio. Pelo menos<br />

é o que diz Yavilla: «J’ai peur quand ça se tait. Quand ça ne parle que dedans. L’intérieur est<br />

plus impitoyable que le dedans» (Le deuxième soir). Um pouco mais à frente, Martial pede às<br />

mulheres para não falarem da morte que se aproxima antes de ficar apavora<strong>do</strong> por causa <strong>do</strong><br />

silêncio: «Taisez-vous. (Long silence.) Non! Parlez, s’il vous plaît. C’est moins creux. C’est<br />

moins creusant.» (Le deuxième soir).<br />

É na didascália técnica que se joga o essencial, pois o «longo silêncio» corresponde<br />

ao confronto <strong>do</strong> ser consigo próprio, a este momento em que, inteiramente sozinho, o ser<br />

percebe, ou pressente, a natureza da sua condição. Perante o precipício, a beira <strong>do</strong> abismo,<br />

não se trata de uma personagem concreta, de um ser humano congolês ou africano, mas<br />

simplesmente <strong>do</strong> ser humano nu perante si próprio. 230<br />

Esta reflexão sobre a linguagem como maneira de mobilar o silêncio leva as<br />

personagens a outra reflexão sobre o que significa viver. Perante tanta injustiça, Aleyo diz<br />

que não vale a pena viver, ao que Martial responde que era preciso abrir a parêntese, agora<br />

230 O próprio Tansi recusava que se lesse a sua obra como especificamente congolesa ou africana para<br />

defender um projeto mais universal, mais humanista: «Je me méfie très souvent de ces cloisonnements. Ce<br />

sont des sortes de cercueils. On veut placer quelqu’un quelque part pour le garder là et qu’il n’en sorte pas. Je<br />

suis dans une situation historique qui m’oblige d’abord à savoir que je suis homme. […] Je n’écris pas en tant<br />

que Congolais pour les Congolais, ou pour les Africains. Je pars d’une expérience humaine et cette expérience<br />

humaine peut être vécue par un Africain, par un Européen ou par un Asiatique.» (Sony Labou Tansi apud<br />

Gbouablé, 2007: 100).Valeria talvez a pena reler tais passagens à luz de outras peças incontornáveis <strong>do</strong> século<br />

XX, da autoria de outros grandes desloca<strong>do</strong>s como Beckett e Ionesco: também estes eram migrantes que,<br />

numa outra língua que a materna, perseguiam como perscrutavam o ser humano nu.<br />

282

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!