24.06.2013 Views

O Trágico do Estado Pós-colonial.pdf - Estudo Geral

O Trágico do Estado Pós-colonial.pdf - Estudo Geral

O Trágico do Estado Pós-colonial.pdf - Estudo Geral

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

final. Cegos pela parte demens <strong>do</strong> seu ser, escolhem o caminho erra<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> ainda detêm a<br />

possibilidade de escolha. Cabe então ao especta<strong>do</strong>r à distância entender percursos, atitudes,<br />

palavras como sen<strong>do</strong> marcas de uma situação trágica. Em A Gloriosa Família, existem <strong>do</strong>is<br />

espeta<strong>do</strong>res à distância: o escravo e o recetor, o primeiro impedi<strong>do</strong> de intervir pois assim<br />

revelaria o seu estatuto. Dentro da diegese, mesmo uma Matilde, ainda que com capacidade<br />

de antevisão, não vê os diversos sinais que anunciam a desgraça. 253<br />

O contexto no qual ocorre a tragédia aponta ao mesmo tempo para a estanquidade<br />

da fronteira em questão e para a fronteira como origem <strong>do</strong> mal. A fatídica relação entre a<br />

filha <strong>do</strong> patriarca e o escravo ocorre quan<strong>do</strong> se saúda a vinda de mais um neto Van Dum,<br />

fruto da violação de uma escrava, Dolores, por Hermenegil<strong>do</strong>. O pólo masculino,<br />

composto pelo patriarca e pelos filhos, não aceita certas transgressões de fronteira, o que<br />

aliás é claramente sinaliza<strong>do</strong> pela linguagem utilizada: para o sexo construí<strong>do</strong> como<br />

<strong>do</strong>minante, o escravo «fodeu» a filha <strong>do</strong> <strong>do</strong>no (Pepetela, 1997: 243). Para o la<strong>do</strong> masculino<br />

da fronteira, a passagem de um la<strong>do</strong> para o outro significa sacrilégio e exige um ordálio, daí<br />

a sentença de Baltazar: «Nenhum escravo toca em filha minha e fica vivo» (Pepetela, 1997:<br />

244). Baltazar Van Dum, completamente <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> pelas representações que fizeram dele<br />

um macho <strong>do</strong>minante, não encara a possibilidade de reorganizar a fronteira, de a tornar<br />

mais maleável, de oficializar a transgressão. Assim quan<strong>do</strong> Hermenegil<strong>do</strong> propõe um<br />

casamento, o que Van Dum até poderia aceitar caso se tratasse da relação de um filho seu<br />

com uma escrava, rejeita o impensável, pois não pode haver casamento entre branca e<br />

escravo. Eis o que afirma Baltazar a partir <strong>do</strong> seu la<strong>do</strong> da fronteira: «Aqui não há<br />

casamentos, nem vendas, nem discussão. Um escravo manchou a honra da família, deve<br />

morrer. E acabou» (Pepetela, 1997: 246).<br />

A sentença remete Thor para o polo <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> da situação <strong>colonial</strong>, pois no seu<br />

caso não se trata somente de sofrer as consequências da diferença sexuada; é condena<strong>do</strong><br />

porque violou a mais estanque das fronteiras. Naquela situação, Thor aparece como uma<br />

personagem <strong>do</strong>minada por um superstrutura – a situação <strong>colonial</strong>, as representações<br />

sociais, o Esta<strong>do</strong> <strong>colonial</strong> – na qual está sediada a origem da sua desgraça. Como veremos<br />

mais à frente com os <strong>do</strong>is Jaime Bunda e com Preda<strong>do</strong>res, o ser trágico em Pepetela é uma<br />

personagem desclassificada, pobre, em situação de fraqueza, muitas vezes uma personagem<br />

secundária. A sua origem social, os seus projetos de vida, as suas tentativas para escapar ao<br />

determinismo que o <strong>do</strong>mina não lhe permitem livrar-se da superestrutura em questão.<br />

253 «Matilde não ouve a minha prece e em breve se escutará o fragor da trovoada. Então será tarde para<br />

remediar o inevitável.» (Pepetela, 1997: 240)<br />

314

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!