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O Trágico do Estado Pós-colonial.pdf - Estudo Geral

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VI. 7. JE, SOUSSIGNÉ CARDIAQUE: UM TRÁGICO DA INEXISTÊNCIA<br />

Este trágico ontológico, este trágico da inexistência para parafrasear Tansi,<br />

encontra-se paradigmaticamente ilustra<strong>do</strong> em Je, soussigné cardiaque, peça em quatro quadros.<br />

Num país imaginário (o Lebango), Mallot Bayenda, ex-professor <strong>do</strong> ensino básico,<br />

rememora-se na prisão as últimas semanas da sua vida. Coloca<strong>do</strong> numa aldeia, opôs-se a<br />

um <strong>do</strong>s homens mais potentes da região, Salvator Perono, ex-colono espanhol que<br />

permaneceu no país depois da independência, <strong>do</strong>minan<strong>do</strong> a economia e os homens da<br />

região. Mallot, porém, recusa submeter-se e tenta resistir ao potenta<strong>do</strong> assim como ao<br />

sistema que este representa. Graças aos apoios que possui na capital, Perono manda-o<br />

exilar numa zona remota <strong>do</strong> país. Na sua luta contra o poder, Mallot acaba por se defrontar<br />

com Bela Ébara, amigo de Perono e director geral <strong>do</strong> ensino na República Popular <strong>do</strong><br />

Lebango. O funcionário manda prendê-lo e Mallot é condena<strong>do</strong> à morte.<br />

O espaço teatral descrito na didascália inicial remete para um lugar de tensão e de<br />

sofrimento: uma cela de prisão. Mallot Bayenda está deita<strong>do</strong> numa maca, o corpo<br />

evidencian<strong>do</strong> marcas de maus tratos. Segue-se um longo monólogo concluí<strong>do</strong> por uma<br />

nota de rodapé a avisar que o resto da peça corresponde a um longo sonho, Mallot<br />

acordan<strong>do</strong> na madrugada com a chegada <strong>do</strong> pelotão de execução. No monólogo, o recetor<br />

defronta-se com uma personagem derrotada, torturada, à beira da morte. Mallot tem aqui a<br />

possibilidade não só de olhar para trás (o que corresponde à analepse que forma a peça) e<br />

de questionar o seu ser íntimo em termos trágicos. É certo que, como veremos, Mallot foi<br />

<strong>do</strong>mina<strong>do</strong> pela terrível força <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> pós-<strong>colonial</strong>, mas foi igualmente <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> por<br />

esta parte mal conhecida de si próprio que nos é agora mais familiar. Devi<strong>do</strong> às<br />

circunstâncias, começa a antever que parte <strong>do</strong> mal se origina algures no seu ser:<br />

«Tu es coupable, coupable de toi.» (Tableau 1, scène 1). E um pouco mais à frente,<br />

acrescenta : «Je suis acculé contre moi – jusqu’à moi. Je crève de ma tête, de mon odeur, de<br />

ma façon de pisser» (Tableau 1, scène 1). No fim <strong>do</strong> percurso, que corresponde para o<br />

recetor ao início da peça, constata que se revoltou em vão, que não conseguiu dar um<br />

significa<strong>do</strong> a si próprio: «Tu n’as pas servi. Tu meurs vierge. Tu te bas dans le vide pour<br />

emmerder le vide» (Tableau 1, scène 1). Apesar da derrota, Mallot ainda procura alguma razão<br />

para o seu empenhamento contra Perono, Ebara e o Esta<strong>do</strong> pós-<strong>colonial</strong> em geral. Talvez<br />

o simples gesto de revolta tenha si<strong>do</strong> suficiente para <strong>do</strong>tar a existência de um significa<strong>do</strong>,<br />

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