24.06.2013 Views

O Trágico do Estado Pós-colonial.pdf - Estudo Geral

O Trágico do Estado Pós-colonial.pdf - Estudo Geral

O Trágico do Estado Pós-colonial.pdf - Estudo Geral

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Morin chamava a sua parte demens. A esta violência da divisão corresponde a violência da<br />

relação com a terra («clouée dans le sang») por parte das mulheres.<br />

É neste momento de tensão íntima que Aleyo, uma outra filha de Libertashio,<br />

aponta para os solda<strong>do</strong>s que revistam as casas no fora-de-palco. Anuncia<strong>do</strong> há algum<br />

tempo, o perigo passa de virtual a atual: os solda<strong>do</strong>s invadem o terraço e o seu chefe, um<br />

sargento, começa a comer com gula («avec goinfrerie» diz a didascália). Além disso, o corpo<br />

da mulher torna-se imediatamente objeto nas mãos <strong>do</strong>s solda<strong>do</strong>s. O que invade o espaço<br />

atual, além da arbitrariedade <strong>do</strong> poder é a violência com o qual se exerce. Aqui o potenta<strong>do</strong><br />

não é o tirano que <strong>do</strong>mina o país a partir da capital, é o seu longínquo representante, o<br />

sargento, último elo na longa cadeia de descentralização da violência. Como o vimos com<br />

as peças de Nkashama, o poder neste contexto gosta de exibir a sua potência, entre outros<br />

elementos, por intermédio <strong>do</strong> corpo martiriza<strong>do</strong>. É exatamente o que acontece com Martial<br />

quan<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s sargentos ordena que morra lentamente («Il faut qu’il meure par régions.<br />

Coupez les oreilles, coupez le nez.» Le deuxième soir). Fora isso que também acontecera a<br />

Libertashio que, segun<strong>do</strong> Ramana, fora decapita<strong>do</strong> e desmembra<strong>do</strong>.<br />

Quan<strong>do</strong> o sargento pede a cabeça de Libertashio, Marc, um solda<strong>do</strong>, mata-o para se<br />

apoderar da sua patente e da sua autoridade. O novo sargento anuncia que Libertashio não<br />

morreu simplesmente porque precisam dele ainda vivo. Marc designa a seguir Martial como<br />

sen<strong>do</strong> Libertashio. Quan<strong>do</strong> Martial lhe contrapõe o quão injusto é, a reação <strong>do</strong> poder<br />

militar assume a arbitrariedade como meio e meta <strong>do</strong> exercício <strong>do</strong> poder: «Marc.- Nous le<br />

savons. /Martial.- Alors pourquoi le faites-vous? / Marc.- Pour être injustes!» (Le premier<br />

soir).<br />

Com o sargento, Marc e, mais à frente, Pueblo, outro solda<strong>do</strong> que abate Marc para<br />

assumir o poder, a peça evidencia, até ao absur<strong>do</strong>, a arbitrariedade <strong>do</strong> poder <strong>do</strong> potenta<strong>do</strong><br />

assim como a sua fragilidade. Makhélé viu nesta figura permutável outra figura chave de um<br />

certo teatro africano, a <strong>do</strong> dita<strong>do</strong>r torcionário que é muitas vezes substituí<strong>do</strong> no decorrer<br />

duma peça, ou seja, substituível por um outro ele próprio (Makhélé, 1995). Nas tragédias de<br />

Sony Labou Tansi, este dita<strong>do</strong>r torcionário imprime a marca <strong>do</strong> seu poder nos corpos: nos<br />

da vítima como no seu. Neste contexto, o corpo torna-se ao mesmo tempo estigma e<br />

evidência <strong>do</strong> poder absoluto como marco <strong>do</strong> exercício passa<strong>do</strong> da violência. 229 Assim o<br />

229 Num estu<strong>do</strong> sobre a presença <strong>do</strong> corpo em três romances de Sony Labou Tansi (La vie et demie, L’État<br />

honteux, Les sept solitudes de Lorsa Lopez), Eugène Nshimiyimana insiste nesta dimensão <strong>do</strong> corpo no Esta<strong>do</strong><br />

pós-<strong>colonial</strong>. Algumas personagens de Tansi (no romance como no teatro), potenta<strong>do</strong>s como vítimas,<br />

evidenciam um corpo feri<strong>do</strong>, repleto de cicatrizes, o que inscreve o corpo no tempo, ou melhor, que associa o<br />

corpo à memória <strong>do</strong>s traumas passa<strong>do</strong>s. Pode defender-se de facto que estas personagens «entretiennent un<br />

280

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!