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O Trágico do Estado Pós-colonial.pdf - Estudo Geral

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Neste contexto, falar de ponto de vista diferente remete para o senti<strong>do</strong> literal da<br />

visão a partir de outro lugar. É de facto de assinalar a acumulação de verbos remeten<strong>do</strong><br />

para o ver/a visão em A Gloriosa Família. Destaca-se repetidamente o olhar <strong>do</strong> escravo, pois<br />

observa com a dupla distância <strong>do</strong> silêncio (para as outras personagens, não para o recetor) e<br />

<strong>do</strong> estatuto social (escravo). O outro ponto de vista é o de quem espreita por uma porta ou<br />

uma janela, de quem observa de longe. Entre os vários cenários que compõem o espaço<br />

romanesco, existe um que constitui a metáfora da visão distanciada: a sanzala de Van Dum<br />

localizada no alto, <strong>do</strong>minan<strong>do</strong> cidade e mar. Eis o que diz o escravo: «Um bom ponto de<br />

observação, sim, este da sanzala. Sobretu<strong>do</strong> se há uma luneta» (Pepetela, 1997: 20).<br />

Ter-se-á nota<strong>do</strong> a importância simbólica <strong>do</strong>s lugares que delimitam uma fronteira<br />

entre o espaço ocupa<strong>do</strong> pelos protagonistas da história hegemónica e o espaço a partir <strong>do</strong><br />

qual o escravo observa uma ação ou ouve uma conversa. Para retomar a metáfora teatral<br />

utilizada em vários momentos <strong>do</strong> capítulo anterior, as portas e as janelas marcam a<br />

separação entre o palco – o lugar <strong>do</strong>s poderosos – e o fora-de-palco, o espaço a partir <strong>do</strong><br />

qual o escravo os observa. 247 Se aprofundarmos a análise, percebe-se que o relato <strong>do</strong><br />

escravo desvenda o que a narrativa oficial tinha, ela própria, deixa<strong>do</strong> de fora, por assim<br />

dizer no fora-de-palco da História, ou, para empregar outra metáfora, fora <strong>do</strong>s limites <strong>do</strong><br />

quadro oficial: veja-se, por exemplo, a recorrência de descrições e de reflexões sobre a<br />

condição escrava.<br />

Ainda relativamente ao ver, falta acrescentar que outra personagem desenvolveu<br />

um ponto de vista diferente, uma nova maneira de ver, neste romance; trata-se de Matilde,<br />

uma das filhas de Baltazar Van Dum. Segun<strong>do</strong> o escravo, ela possui a capacidade de ver<br />

noutro plano, o <strong>do</strong> futuro: é através dela que o recetor descobre em Van Dum a origem de<br />

uma das famílias crioulas mais antigas de Luanda, uma família que reencontraremos na<br />

Luanda pós-<strong>colonial</strong> de Jaime Bunda. 248 Eis, por exemplo, o que ela afirma relativamente ao<br />

futuro: «Uma família gloriosa é isso mesmo, resolve problemas de forma que nunca fica<br />

esquecida. Desconheço os motivos, mas a nossa família será famosa» (Pepetela, 1997: 302).<br />

247 Como no trecho seguinte, onde o escravo observa/ouve a partir de fora uma conversa entre Van Dum e<br />

os filhos dentro da senzala: «Eu encostei melhor na parede da varanda, para que a resposta <strong>do</strong> meu <strong>do</strong>no, que<br />

eu conhecia por antecipação, me chegasse nítida através da janela. Gostava de notar as diferenças nas<br />

palavras, à medida que o tempo passava sobre o mesmo relato» (Pepetela, 1997: 25).<br />

248 Inocência Mata foi uma das primeira a ver em Yaka, como em Lueji e em A Gloriosa Família, a importância<br />

da personagem primordial, a que está na origem da Angola moderna: «É que estas obras realizam a<br />

textualização de traços primordiais (o primeiro Seme<strong>do</strong>, a primeira Rainha, o primeiro Van Dum…) que<br />

configurariam a busca de identidade que se pretende de raiz vinculada ao fértil e diverso solo pátrio e<br />

desvelariam a recuperação de um mito (de fundação) que sacraliza um território, através de movimentos em<br />

torno <strong>do</strong> Mesmo e <strong>do</strong> Uno, vistos como significantes da conquista territorial, com processos de confrontação/<br />

harmonização, de sincretização com o Outro.» (Mata, 2001: 182).<br />

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