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O Trágico do Estado Pós-colonial.pdf - Estudo Geral

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uma violência que, consoante o médico, se aproxima da casa. O recetor entende<br />

rapidamente que uma linha separa Tossler da sociedade local, metonimicamente<br />

representada por Luen<strong>do</strong>. Trata-se de uma linha, ou de uma fronteira, conscientemente<br />

erguida pelo médico para se distinguir em tu<strong>do</strong> daqueles a quem chama «selvagens», uma<br />

linha que evoca as de Santos e de Mamdani evocadas no capítulo III.2. Do ponto de vista<br />

de Tossler, tu<strong>do</strong> o que existe <strong>do</strong> la<strong>do</strong> «deles» é conota<strong>do</strong> negativamente, até a comida serve<br />

para definir os la<strong>do</strong>s da «fronteira». Tossler recusa comer o que Luen<strong>do</strong> preparou em nome<br />

da civilização: «Ma bouche de Prince. Je suis venu pour les développer, oui ou non? Alors,<br />

il ne faut pas qu’ils me sous-développent. Je ne le supporterai pas» (I, 2). Mais à frente,<br />

Tossler, reproduzin<strong>do</strong> o que Fanon chamava a personalidade <strong>colonial</strong>, torna a «fronteira»<br />

entre os <strong>do</strong>is la<strong>do</strong>s estanque em nome da civilização: «Leur école, des branchages séchés,<br />

de larges feuilles de palmiers. Et on y apprend les coassements des crapauds comme armes<br />

de guerre. Le monde de la frayeur à l’état brut» (I, 3).<br />

O trágico não se manifesta somente através da ameaça externa dimanan<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

Esta<strong>do</strong> pós-<strong>colonial</strong>. Também está presente na própria personagem de May Britt, este algo<br />

impreciso, esta parte <strong>do</strong> eu mal conhecida ou desconhecida pelo próprio eu: «Dans ma tête,<br />

c’est comme le jour de la mort. Je sens quelque chose qui pèse là, lourdement, comme si<br />

j’allais être aspirée vers la terre» (I, 2). Este «sinto algo» caracteriza, como o vimos (Capítulo<br />

IV), muitas situações trágicas, pois a origem da desgraça, <strong>do</strong> sofrimento ou <strong>do</strong> mal<br />

encontra-se numa macro-estrutura que pesa no destino das personagens, no conflito entre<br />

normas antagónicas, mas igualmente algures na intimidade <strong>do</strong> sujeito.<br />

Entretanto, a rádio, que já tinha anuncia<strong>do</strong> a entrada de forças estrangeiras para<br />

salvar os europeus (I, 2), descreve agora uma situação caótica, com motins incontroláveis<br />

(I, 3). A degradação da casa, progressivamente inabitável (uma «pocilga» diz May Britt no<br />

início da cena), continua a corresponder, numa relação de homologia, à degradação da<br />

situação social. Se o perigo virtual parece cada vez mais perto de se atualizar, outro perigo,<br />

mais íntimo, ameaça May Britt: Luen<strong>do</strong> encontrou uma goiaba de estranho aspeto, como se<br />

tivesse si<strong>do</strong> manipulada diz o texto, e oferece-a a May Britt. Esta queixa-se <strong>do</strong> sabor<br />

estranho da fruta ao que Luen<strong>do</strong> responde que talvez se trate de um filtro de amor. Cita<br />

então de cor uma longa passagem de Tristão e Isolda, que se situa após a morte de Tristão.<br />

Para o recetor, mais talvez <strong>do</strong> que para as próprias personagens, o intertexto desempenha o<br />

papel da advertência, pois o que Luen<strong>do</strong> anuncia assim logo no primeiro ato é a possível,<br />

até provável, morte <strong>do</strong>s amantes.<br />

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