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O Trágico do Estado Pós-colonial.pdf - Estudo Geral

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Césaire e Labou Tansi quan<strong>do</strong> retomaram Shakespeare para o reescrever. Porém, no caso<br />

de Pepetela, a operação vai ainda mais longe, pois o próprio recetor acaba por ser<br />

envolvi<strong>do</strong>, em última análise, no trabalho de releitura. Pois, se o escravo nos é descrito por<br />

Van Dum como mu<strong>do</strong> e analfabeto somente no fim da narrativa, tal implica a total<br />

inclusão, desde o início, <strong>do</strong> recetor no polo ti<strong>do</strong> como subalterno pelo polo <strong>do</strong>minante.<br />

Por outras palavras, passámos a fronteira que, naquela situação <strong>colonial</strong>, separava o<br />

civiliza<strong>do</strong> <strong>do</strong> selvagem, o humano <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> de natureza, sem contu<strong>do</strong> perder de vista as<br />

narrativas <strong>do</strong>minantes. Talvez a subtileza de Pepetela neste campo resida precisamente<br />

numa mudança de ponto de vista que não implica a substituição de uma narrativa por<br />

outra.<br />

Acrescentaria ainda que, se o papel <strong>do</strong> escravo pode ser interpreta<strong>do</strong> como sen<strong>do</strong> o<br />

de um historia<strong>do</strong>r local que tenta relatar uma das versões possíveis <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, também<br />

pode ser li<strong>do</strong> numa perspetiva mais poetológica e então representaria na diegese algo <strong>do</strong><br />

discurso <strong>do</strong> autor sobre a sua própria prática. Assim, como não pensar no escritor, e não<br />

somente em Pepetela, quan<strong>do</strong> é defendi<strong>do</strong> o direito à imaginação:<br />

Tu<strong>do</strong> o que possa vir a saber <strong>do</strong> ocorri<strong>do</strong> dentro <strong>do</strong> gabinete será graças à<br />

imaginação. Sobre este caso e sobre muitos outros. Um escravo não tem direitos,<br />

não tem nenhuma liberdade. Apenas uma coisa lhe não podem amarrar: a<br />

imaginação. Sirvo-me sempre dela para completar relatos que me são sonega<strong>do</strong>s,<br />

tapan<strong>do</strong> os vazios.» (Pepetela, 1997: 14)<br />

Aos poucos, o recetor percebe que o escravo se assemelha a um romancista, alguém<br />

que de facto dá saltos temporais, tapa as lacunas da História com a imaginação, entende a<br />

psicologia das outras personagens. Assim é ele que percebe a profundidade <strong>do</strong> ódio de<br />

Diogo para com Baltazar Van Dum:<br />

Ninguém mais percebeu, só eu, mas ninguém tem o meu faro para detectar<br />

insignificâncias escondidas na cabeça das pessoas. Às vezes essas coisas escondidas<br />

não são tão insignificantes assim, acabam por explicar acontecimentos futuros.<br />

Muitas vezes tão no futuro que as ligações não se fazem, ficam escondidas em<br />

repouso, até que alguém cosa as pontas. Sucede provavelmente com certa<br />

frequência não surgir alguém com esse talento de coser pontas e o conhecimento se<br />

perde. (Pepetela, 1997: 115)<br />

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