24.06.2013 Views

O Trágico do Estado Pós-colonial.pdf - Estudo Geral

O Trágico do Estado Pós-colonial.pdf - Estudo Geral

O Trágico do Estado Pós-colonial.pdf - Estudo Geral

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

língua. De facto, os dramaturgos – os escritores <strong>do</strong> meu corpus mas não só – utilizam uma<br />

língua imperial num contexto marca<strong>do</strong> pelo plurilinguismo, pelo contacto permanente<br />

entre línguas, pelo trabalho diário de tradução sociolinguística. Assim, «les mots utilisés<br />

sont chargés d’une histoire qui n’est pas celle de la Métropole, et même en cas d’histoire<br />

commune, les visions sont différentes» (Rakotoson, 2003: 17).<br />

Por outras palavras, os neologismos, as estruturas sintáticas deturpadas, as<br />

interferências, voluntárias ou não, 197 entre línguas também fazem das tragédias de Césaire,<br />

como de muitos outros escritores da época, um bem simbólico ao mesmo tempo familiar,<br />

pois reconhecemos ali uma sintaxe trágica, e estranha, pois identificamos uma língua<br />

claramente marcada pela alteridade. Esta forma de escrever pode ser interpretada como<br />

uma maneira de responder à colonização, mas pode também ser interpretada como reposta<br />

ao silêncio imposto pelas censuras pós-coloniais. Qualquer que seja a interpretação, o dito<br />

aparenta-se aqui ao famoso grito de Césaire – abundam de facto os apelos ao grito tanto no<br />

teatro como no Discurso contra o <strong>colonial</strong>ismo –, um grito que possui uma vertente ontológica,<br />

uma espécie de «Grito, pois sou», ou, para citar ainda Rakotoson, «Au déni de soi, il fallait<br />

des hurlements d’existence, et face à la dévastation, la re-création sera permanente»<br />

(Rakotoson, 2003: 17).<br />

Com Une saison au Congo, o Esta<strong>do</strong> pós-<strong>colonial</strong> encontra uma das suas traduções<br />

paradigmáticas no registo da tragédia. No entanto, Césaire importa no contexto deste<br />

trabalho por ter constituí<strong>do</strong> uma referência para muitos autores <strong>do</strong> Sul, entre outras razões,<br />

porque conseguiu criar uma tragédia a partir <strong>do</strong> Sul. É certo que, à semelhança <strong>do</strong> que<br />

acontece com os dramaturgos que reescrevem os clássicos gregos, existe um palimpsesto,<br />

mas um palimpsesto que tem si<strong>do</strong> alvo não só de reescrita mas também de reinterpretação,<br />

o que corresponde em muitos casos a uma releitura crítica de obras <strong>do</strong> cânone ocidental<br />

(Césaire, mais uma vez, surge aqui como paradigma com o seu trabalho sobre A tempestade<br />

de Shakespeare). É inegável então a apropriação formal de uma certa tradição teatral<br />

ocidental, ou seja, da tragédia, mas os autores afro-caribenhos apoderaram-se desta com o<br />

claro propósito de a «reorientar ideologicamente» (Mégevand, 2009: 95). Na geração<br />

197 Zezeze vê na interferência uma das características mais importantes das literaturas africanas escritas em<br />

francês. Trata-se aqui de uma interferência de tipo cultural entre uma língua de escrita (aqui o francês) e um<br />

substrato cultural africano expresso noutras línguas: «La plupart des œuvres francophones africaines actuelles<br />

s’inscrivent dans cette stratégie discursive et font partie globalement de ce qu’on peut appeler le discours<br />

francophone africain, qui peut être défini comme un ensemble des énoncés écrits, émis par les Africains, en<br />

langue française, sur des realia africaines, et dans lesquels, corrélativement à cet état de fait, il y a une forte<br />

proportion d’interférences culturelles et linguistiques dues au substrat culturo-linguistique africain.» (Zezeze,<br />

1992: 15).<br />

234

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!