24.06.2013 Views

O Trágico do Estado Pós-colonial.pdf - Estudo Geral

O Trágico do Estado Pós-colonial.pdf - Estudo Geral

O Trágico do Estado Pós-colonial.pdf - Estudo Geral

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

<strong>do</strong> mal e da desgraça ultrapassa os limites da representação. A sua pergunta é bem<br />

conhecida: o que é que diferenciaria o gesto de um herói trágico, Agamemnon sacrifican<strong>do</strong><br />

Efigénia, <strong>do</strong> gesto de Abraão preste a imolar o filho? O primeiro ainda consegue justificar<br />

o seu gesto pelo recurso a uma finalidade, a uma ética, um bem superior, enquanto o<br />

segun<strong>do</strong> abdica de qualquer ética, ou melhor, suspende durante um momento o sentimento<br />

ético para sacrificar sem razão. Há neste caso como uma espécie de suspensão da razão que<br />

o filósofo dinamarquês chama de absurda. De facto, Abraão não atua para apaziguar o seu<br />

Deus ou para recuperar alguém, ele próprio ou alguém da família, no seu direito a reinar.<br />

Trata-se de uma desgraça cujos contornos são íntimos, cuja origem se radica no seio <strong>do</strong> ser<br />

humano, numa parte mal ou nada conhecida dele próprio. Por outras palavras, Abraão<br />

experimenta a <strong>do</strong>r <strong>do</strong> herói trágico, mas sem poder justificar o que o move, sem poder<br />

fundamentar o sofrimento que acompanha o gesto.<br />

Se o herói de tragédia é para Kierkegaard uma espécie de herói tranquilo, é-o<br />

sobretu<strong>do</strong> para o recetor que consegue desvendar as razões da sua desgraça, mais até <strong>do</strong><br />

que a própria personagem. Neste caso, situamo-nos fora da quietude <strong>do</strong> texto trágico, fora<br />

<strong>do</strong> seu círculo reconfortante, pois existem desgraças terríveis sem finalidade, desgraças sem<br />

causas. Trata-se de uma situação absurda para o olhar exterior: «O observa<strong>do</strong>r mal<br />

consegue entendê-lo, nem sequer pode repousar confiadamente o olhar sobre ele».<br />

(Kierkegaard, 2009: 119). O herói trágico age, tenta integrar a sua ação num quadro mais<br />

global: uma espécie de vontade, de força ou de macro-estrutura que o ultrapassa e que o<br />

leva a fracassar, mas ao fracassar ainda remete para a condição humana e suscita compaixão<br />

nos outros.<br />

«Não é possível chorar por Abraão» diz o filósofo, (Kierkegaard, 2009: 120) não<br />

por causa <strong>do</strong> la<strong>do</strong> terrível <strong>do</strong> ato ou da sua extrema violência – pois isto remeteria<br />

igualmente para o gesto <strong>do</strong> herói trágico –, mas por causa <strong>do</strong> seu la<strong>do</strong> absur<strong>do</strong>, da sua<br />

ausência de justificação. Sofro com Édipo, Antígona ou Medeia porque, em última<br />

instância, ainda os enten<strong>do</strong>, enten<strong>do</strong> as razões da desgraça que os atinge. É neste ponto<br />

fulcral que Kierkegaard é útil para pensar o trágico, pois mostra o quão importante é a<br />

questão da origem <strong>do</strong> mal ou <strong>do</strong> sofrimento para entender o trágico: não só tem de ser<br />

colocada como ainda tem de oferecer a possibilidade de uma justificação. Nota-se por fim,<br />

mais uma vez, a necessária presença <strong>do</strong> recetor, ou observa<strong>do</strong>r para utilizar um termo de<br />

Kierkegaard: se o herói grego ou shakespeariano se torna trágico é porque alguém o<br />

interpretou como tal, se o recetor o acompanha comovi<strong>do</strong> por causa <strong>do</strong> seu estatuto de ser<br />

173

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!