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Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

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das gran<strong>de</strong>s amn<strong>é</strong>sias nacionais: a guerra colonial, que resultou em parte do primeiro e<br />

provocou o segundo.<br />

Mas o terceiro tópico <strong>é</strong> o mais fascinante e <strong>de</strong>via <strong>de</strong>spertar a curiosida<strong>de</strong> dos historiadores<br />

sociais. São as criadas. Quantas mulheres naquele programa, que procuram ou são procuradas,<br />

não foram criadas dom<strong>é</strong>sticas! São, <strong>é</strong> certo, histórias que se reportam ao período entre os anos<br />

40 e 60. (Nisso o país terá passado por <strong>um</strong>a gran<strong>de</strong> mudança: não só <strong>é</strong> difícil para a classe m<strong>é</strong>dia<br />

<strong>de</strong> hoje ter criada, como já <strong>é</strong> tamb<strong>é</strong>m “inconcebível” em termos <strong>de</strong> mentalida<strong>de</strong>). São histórias<br />

<strong>de</strong> saída da al<strong>de</strong>ia para servir na cida<strong>de</strong>; ou <strong>de</strong> escravatura encapotada sob a figura da adopção,<br />

muitas vezes forçada. Está por fazer a história <strong>de</strong> <strong>um</strong> país que viu milhares <strong>de</strong> mulheres suas<br />

circularem como mercadoria pelo país, vivendo entre estranhos, e per<strong>de</strong>ndo os laços com os<br />

seus.<br />

Em geral, estamos perante a revelação <strong>de</strong> relações que a nossa memória social obliterou: o<br />

tráfico <strong>de</strong> dom<strong>é</strong>sticas, a emigração, o colonialismo e a guerra, a família como lugar <strong>de</strong> conflito.<br />

N<strong>um</strong> país pequeno, em <strong>é</strong>poca <strong>de</strong> tecnologias <strong>de</strong> informação, as pessoas que ali nos surgem<br />

andaram literalmente “às aranhas” procurando-se <strong>um</strong>as às outras. Distâncias geográficas<br />

pequenas passaram a ser gran<strong>de</strong>s. Relações cara-a-cara não foram substituídas pela carta ou o<br />

telefone. Todavia – subitamente – a segunda geração, a da filha da velha criada, corre à TV para<br />

repor a sua história.<br />

Sem querer, coisas como “Ponto <strong>de</strong> Encontro” põem as pessoas anónimas a reconstruirem as<br />

suas histórias e, com elas, a memória <strong>de</strong> <strong>um</strong> país em que as mis<strong>é</strong>rias sociais têm por primeiro<br />

efeito o <strong>de</strong>sencontro e a tristeza.<br />

Os Arg<strong>um</strong>entos Bósnios<br />

(Público, 04.02.96)<br />

Um caf<strong>é</strong>. Depois do aci<strong>de</strong>nte na Bósnia. O homem que sorve a sua bica diz que os soldados<br />

portugueses se ofereceram porque a soldada era boa. O empregado <strong>de</strong> balcão, que folheia <strong>um</strong><br />

jornal, repete o que lê: “pois <strong>é</strong>, temos que ass<strong>um</strong>ir os nossos compromissos com a NATO, se<br />

não ningu<strong>é</strong>m nos respeita”. Uma senhora algo incomodada com a conversa diz que nem sabe<br />

on<strong>de</strong> <strong>é</strong> a Bósnia e que, a enviar soldados, <strong>de</strong>via ser para Angola. Um senhor <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> relembra<br />

aos presentes que os soldados são voluntários. Um rapaz mais cínico diz que os Portugueses<br />

ainda ficam com mais fama <strong>de</strong> fazerem triste figura.<br />

Os arg<strong>um</strong>entos Bósnios são <strong>um</strong>a salada macedónia <strong>de</strong> perspectivas cruzadas que revelam que<br />

algo não <strong>é</strong> claro neste processo. Se saírmos do caf<strong>é</strong> e “subirmos” at<strong>é</strong> aos políticos e jornalistas,<br />

que temos? Mário Soares <strong>é</strong> visto na TV insistindo no carácter voluntário dos soldados. Outros<br />

insistem no facto <strong>de</strong>, al<strong>é</strong>m <strong>de</strong> voluntários, serem profissionais. À direita diz-se que nada temos<br />

que ver com aquela guerra, mas sim com Angola (como se as asneiras não tivessem sido já<br />

suficientes). À esquerda fala-se do eleitoralismo <strong>de</strong> Clinton e da submissão à NATO (como se<br />

não houvesse <strong>um</strong>a questão <strong>de</strong> vida ou morte a resolver). Algures pelo meio invoca-se a<br />

moralida<strong>de</strong> e a responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> participar na resolução <strong>de</strong> <strong>um</strong> conflito Europeu que gerou<br />

toda a esp<strong>é</strong>cie <strong>de</strong> sofrimentos.<br />

Do lado português, os jovens que morreram eram <strong>de</strong> origem h<strong>um</strong>il<strong>de</strong> – como se cost<strong>um</strong>a dizer.<br />

A sua escolha da profissão militar, sendo “livre”, terá sido condicionada por <strong>um</strong>a s<strong>é</strong>rie <strong>de</strong><br />

factores. Des<strong>de</strong> o <strong>de</strong>semprego, at<strong>é</strong> à mística masculinista da guerra, passando pela possibilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>um</strong>a carreira n<strong>um</strong>a instituição paternalista, que trata da vida das pessoas e lhes garante<br />

subsistência, assistência social, e <strong>um</strong> guião <strong>de</strong> valores em torno da <strong>de</strong>fesa da pátria. Em tempos,<br />

teriam ido quer quisessem quer não. Fosse atrav<strong>é</strong>s do recrutamento ou do serviço militar<br />

obrigatório, a hierarquia militar sempre repetiu a hierarquia social: quem vai e morre são os<br />

mais <strong>de</strong>sprotegidos económica e culturalmente. E fosse para on<strong>de</strong> fosse: nunca os soldados<br />

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