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Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

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(Público, 05.01.97)<br />

Passei este período <strong>de</strong> festas na B<strong>é</strong>lgica. Entre os prazeres dos reencontros familiares e o<br />

acompanhamento diário do caso Dutroux, fui lendo “The Mimic Men” <strong>de</strong> V.S. Naipaul, o qual,<br />

juntamente com Salman Rushdie, <strong>é</strong> <strong>um</strong> dos meus escritores favoritos. Ambos conseguem<br />

transmitir a sensação <strong>de</strong> não se pertencer a lado nenh<strong>um</strong> e pertencer-se a toda a parte. São os<br />

escritores por excelência do que alguns chamam “a condição pós-mo<strong>de</strong>rna” e outros o “póscolonialismo”.<br />

Isto <strong>é</strong>: dos tempos que vivemos.<br />

Em “The Mimic Men”, Naipaul narra a história <strong>de</strong> <strong>um</strong> intelectual das colónias exilado, por<br />

vonta<strong>de</strong> própria, em Londres. Aí vê neve pela primeira vez, dorme com mulheres<br />

“emancipadas” pela primeira vez, está no centro do imp<strong>é</strong>rio, n<strong>um</strong> mundo <strong>de</strong> colinas ver<strong>de</strong>jantes<br />

e canções <strong>de</strong> Natal, como o que que se habituara <strong>de</strong> criança a ler nos manuais escolares da sua<br />

ilha caribenha natal. Ao mesmo tempo apercebe-se <strong>de</strong> como Londres <strong>é</strong> feita <strong>de</strong> perif<strong>é</strong>ricos como<br />

ele ou, então, <strong>de</strong> londrinos remediados vivendo em casas que exalam o cheiro a feijões com<br />

salsicha. O centro do imp<strong>é</strong>rio só <strong>é</strong> fascinante na periferia.<br />

O herói regressa à imaginária Isabella, on<strong>de</strong> envereda pela carreira política. Esta acabará por<br />

falhar estrondosamente: as tentativas <strong>de</strong> imitar <strong>um</strong> i<strong>de</strong>alizado sistema político <strong>de</strong>mocrático do<br />

centro colapsam face àquilo que o próprio imp<strong>é</strong>rio criou – a socieda<strong>de</strong> filha da escravatura, on<strong>de</strong><br />

a raça e a classe social se misturam <strong>de</strong> formas explosivas. Resta-lhe o regresso ao exílio.<br />

Tamb<strong>é</strong>m nos livros <strong>de</strong> Rushdie a relação tensa e mutuamente sedutora entre Oci<strong>de</strong>nte e Oriente<br />

nos <strong>é</strong> dada graças ao exílio do autor. Naipaul, Trinidadiano <strong>de</strong> família indiana, emigrado em<br />

Londres, e Rushdie, inglês <strong>de</strong> origem Indiana: eles são os guias para perceber a “mimesis” da<br />

globalida<strong>de</strong> – os oci<strong>de</strong>ntais fantasiando sobre o exótico <strong>de</strong> modo a esquecer as asneiras que com<br />

ele fizeram; e os exóticos fantasiando sobre o Oci<strong>de</strong>nte que lhes foi apresentado como o único<br />

mundo possível. Escusado será dizer que, nesta mimesis – neste macaqueamento – todos<br />

per<strong>de</strong>m e se <strong>de</strong>silu<strong>de</strong>m quando confrontados com a realida<strong>de</strong>.<br />

Que tem tudo isto a ver connosco? A B<strong>é</strong>lgica não <strong>é</strong> bem o centro do nosso imp<strong>é</strong>rio, nem<br />

Portugal <strong>um</strong>a colónia no sentido estrito. Mas estamos n<strong>um</strong> grau interm<strong>é</strong>dio. Colonizámos<br />

pobremente, traficámos escravos, mas não nos constituímos como o farol para on<strong>de</strong> os<br />

colonizados olham. Temos sido colonizados à socapa, mas sem que nos representemos como<br />

colónia no cu <strong>de</strong> Judas. É esta situação ambígua que constitui o nosso maior pesa<strong>de</strong>lo e,<br />

paradoxalmente, a nossa maior esperança. O pesa<strong>de</strong>lo: vivemos n<strong>um</strong>a <strong>de</strong>mocracia formal, sem<br />

que a <strong>de</strong>mocracia real funcione. Basta referir o caso da polícia <strong>de</strong> Évora e o <strong>de</strong>senrolar do<br />

respectivo folhetim. Se se tratasse <strong>de</strong> <strong>um</strong>a imitação do caso Dutroux, po<strong>de</strong>r-se-ia dizer que a<br />

r<strong>é</strong>plica <strong>é</strong> melhor que o original. Se o caso Dutroux mostra como a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> <strong>um</strong>a <strong>de</strong>mocracia<br />

limpa e <strong>de</strong> <strong>um</strong>a socieda<strong>de</strong> “como <strong>de</strong>ve ser” no Norte da Europa <strong>é</strong> fantasia, o caso da polícia<br />

mostra como o nosso avanço civilizacional <strong>é</strong> <strong>um</strong> tropeção. Nem o ministro se <strong>de</strong>mite, nem o<br />

chefe da polícia <strong>é</strong> <strong>de</strong>mitido, nem o primeiro-ministro se pronuncia – e nisto continuamos com<br />

<strong>um</strong>a polícia (e <strong>um</strong>a GNR) dirigidas por militares. Po<strong>de</strong>-se ser mais colonial?<br />

A esperança: que se perceba <strong>de</strong> <strong>um</strong>a vez por todas que <strong>é</strong> em casos como este que se joga a<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Portugal ser <strong>um</strong> sítio interessante. É no aprofundamento da nossa <strong>de</strong>mocracia<br />

que se joga a resolução dos pontos negros do nosso passado e que se po<strong>de</strong> evitar <strong>de</strong>scambar na<br />

paz podre que assolou os países “mais <strong>de</strong>senvolvidos”. Se somos, tamb<strong>é</strong>m, “mimic men”, que o<br />

sejamos em relação às coisas que valem a pena vindas dos nossos dois espaços míticos: o<br />

“ultramar” e a “Europa”. Do primeiro precisamos <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r o espírito <strong>de</strong> construção, futuro e<br />

invenção <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s. Em vez <strong>de</strong> nos imaginarmos erroneamente como <strong>um</strong> povo <strong>de</strong><br />

alegres e <strong>de</strong>scontraídos latinos – que não somos – miscigenados com a África e a Am<strong>é</strong>rica do<br />

Sul – coisa que não conseguimos culturalmente. Do segundo precisamos <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r os<br />

mecanismos práticos <strong>de</strong> assegurar a <strong>de</strong>mocracia e não a auto-gratificação balofa <strong>de</strong> pertencer à<br />

“civilização europeia”. Precisamos, por exemplo, <strong>de</strong> polícias civis, <strong>de</strong> políticos que saibam<br />

responsabilizar-se e <strong>de</strong> <strong>um</strong>a justiça que não admita o que se está a passar.<br />

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