Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
PS: A frase do dia, escrita n<strong>um</strong> cartaz na manif <strong>de</strong>, salvo erro, Hong Kong: “STOP MAD<br />
COWBOY DISEASE!”<br />
Cara Helena Matos,<br />
(Webpage, 22.02.03)<br />
Já nos conhecemos n<strong>um</strong> programa <strong>de</strong> televisão e leio regularmente as suas crónicas. Foi assim<br />
que fui formando <strong>de</strong> si a imagem <strong>de</strong> <strong>um</strong>a pessoa culta e inteligente. Talvez por isso a sua<br />
crónica <strong>de</strong> 22 <strong>de</strong> Fevereiro me tenha <strong>de</strong>ixado perplexo. Não a primeira parte, com a qual<br />
concordo inteiramente, mas a segunda, intitulada “O mist<strong>é</strong>rio dos homossexuais”.<br />
Elogia, e com toda a razão, a postura <strong>de</strong> Guilherme <strong>de</strong> Melo, por ter dado a cara no programa <strong>de</strong><br />
Herman Jos<strong>é</strong> para <strong>de</strong>sfazer confusões entre homossexualida<strong>de</strong> e pedofilia. Mas talvez a Helena<br />
gostasse <strong>de</strong> saber que têm sido cada vez mais as pessoas a darem a cara como homossexuais:<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> os tempos da fundação da ILGA com Gonçalo Dinis (e <strong>de</strong>pois Jos<strong>é</strong> Manuel Fernan<strong>de</strong>s),<br />
at<strong>é</strong> à crescente presença da Opus Gay com António Serze<strong>de</strong>lo e Anabela Rocha, passando por<br />
S<strong>é</strong>rgio Vitorino do GTH, Fabíola Cardoso do Clube Safo, e tantos e tantas cujos nomes não<br />
incluo (injustamente) por falta <strong>de</strong> espaço. E nos quais – e porque não sou dado a falsas<br />
mod<strong>é</strong>stias – me incluo a mim mesmo, cujo coming out foi feito nas páginas do Público há<br />
muitos anos (do qual fui afastado, tempo <strong>de</strong>pois, sem aviso nem explicação: as crónicas que<br />
enviava há já vários anos <strong>de</strong>ixaram subitamente <strong>de</strong> ser publicadas, no que po<strong>de</strong>rá ter sido <strong>um</strong><br />
sinal do neo-liberalismo laboral que agora se consolidou – já que prefiro não correr o risco <strong>de</strong><br />
ser acusado <strong>de</strong> paranóia com a homofobia).<br />
A visibilida<strong>de</strong> que a Helena tanto exige aos gays e l<strong>é</strong>sbicas gostariam eles e elas <strong>de</strong> a po<strong>de</strong>r ter.<br />
Mas não po<strong>de</strong>m. N<strong>um</strong> país atrasado como o nosso (que outro nome se po<strong>de</strong> dar a <strong>um</strong>a socieda<strong>de</strong><br />
“católica”, familista e <strong>de</strong> trabalho precário? On<strong>de</strong>, entre outras coisas, o aborto <strong>é</strong> ilegal?). A<br />
esmagadora maioria dos gays e l<strong>é</strong>sbicas não são gente dos media, da universida<strong>de</strong> ou do po<strong>de</strong>r.<br />
É certo que muitos e muitas pactuam com a hipocrisia dominante. Chama-se a isso “efeito <strong>de</strong><br />
hegemonia”: quando os excluídos interiorizam a lógica da sua exclusão. Mas talvez a Helena<br />
esteja a incorrer n<strong>um</strong> erro típico das elites em países perif<strong>é</strong>ricos: <strong>de</strong> tão habituados a outras<br />
paragens mais liberais, pensamos que por cá <strong>é</strong> fácil ass<strong>um</strong>ir as liberda<strong>de</strong>s e direitos. Não <strong>é</strong>.<br />
Mas cá como “lá”, a visibilida<strong>de</strong> dos excluídos (negros, gays, mulheres...) constrói-se em<br />
colectivo, com activida<strong>de</strong>s que tenham a ver com duas coisas: a exigência <strong>de</strong> direitos e a<br />
manifestação <strong>de</strong> <strong>um</strong> espírito <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong>. Daí a enorme importância <strong>de</strong> marchas, arraiais,<br />
pri<strong>de</strong>s, festivais <strong>de</strong> cinema, etc. É assim que se começa a sair <strong>de</strong> “guetos” para a rua. Para que<br />
nas casas e nos locais <strong>de</strong> trabalho (e, sim, nos jornais) se possa começar a enten<strong>de</strong>r que aquelas<br />
pessoas existem. Não somos sobretudo nós que somos silenciosos, são os outros que nos<br />
silenciam – da inexistência <strong>de</strong> imagens <strong>de</strong> homossexualida<strong>de</strong> na publicida<strong>de</strong> ou filmes, at<strong>é</strong> à<br />
pressão violenta da normalização constante da heterossexualida<strong>de</strong> (“filho, quando te casas?”).<br />
<strong>Bem</strong> sei que para muitos isto <strong>é</strong> o discurso do “coitadinho”. Mas isso <strong>é</strong> mais <strong>um</strong> exemplo da<br />
típica atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> culpar as vítimas (que as mulheres, aliás, tão bem conhecem).<br />
O meu arg<strong>um</strong>ento leva-me a dois assuntos mais, cara Helena. O primeiro <strong>é</strong> que, ao contrário do<br />
que se pensa, a balança <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r (e, logo, <strong>de</strong> visibilida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> “voz”) entre hetero e<br />
homossexualida<strong>de</strong> não <strong>é</strong> sim<strong>é</strong>trica. É, tal como nas relações <strong>de</strong> g<strong>é</strong>nero, assim<strong>é</strong>trica. Uma ocupa<br />
o centro, a normalida<strong>de</strong> não questionada, a outra a sombra e a margem. Não se po<strong>de</strong> exigir que<br />
as pessoas <strong>de</strong> ambos os lados ajam com a mesma “normalida<strong>de</strong>”. Uns não per<strong>de</strong>m nada, os<br />
outros po<strong>de</strong>m per<strong>de</strong>r tudo.<br />
O segundo tem a ver com a equação entre po<strong>de</strong>r e responsabilida<strong>de</strong>. Acredito que quem tem o<br />
primeiro <strong>de</strong>ve ter, e <strong>de</strong> forma acrescida, a segunda. Isto aplica-se ao quarto po<strong>de</strong>r, o dos media.<br />
156