Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
atravessar <strong>um</strong>a rua. O obelisco dos Restauradores, por o ser, ainda escapa. Dom Pedro IV, no<br />
Rossio, não <strong>é</strong> D. Pedro IV. Dom Jos<strong>é</strong> no Terreiro do Paço enquadra-se bem no espírito <strong>de</strong><br />
<strong>é</strong>poca. Mas já Àlvares Cabral empunha <strong>um</strong>a ban<strong>de</strong>ira que parece prestes a caír sobre os<br />
transeuntes. E Duarte Pacheco, à entrada da A5, parece daquelas estátuas <strong>de</strong> jardim <strong>de</strong> casa<br />
suburbana clan<strong>de</strong>stina. A melhor estátua <strong>de</strong> Lisboa não o <strong>é</strong>: o amontoado <strong>de</strong> pedras que <strong>de</strong>coram<br />
o relvado da Praça <strong>de</strong> Espanha. É <strong>um</strong>a instalação arrojada e não planeada que faz esquecer<br />
Gulbenkian e o seu falcão, feito divinda<strong>de</strong> egípcia.<br />
Tenho, por<strong>é</strong>m, dois ódios <strong>de</strong> estimação: a estátua <strong>de</strong> Sá Carneiro no Areeiro (recuso-me a<br />
chamar outra coisa àquela praça) e o mon<strong>um</strong>ento ao Cristo-Rei. A primeira – <strong>um</strong> pastiche <strong>de</strong><br />
mau-gosto – <strong>é</strong> escandalosa por outra razão: as setas do símbolo do PSD são perfeitamente<br />
i<strong>de</strong>ntificáveis nas fachadas laterais do mon<strong>um</strong>ento. É compreensível que se faça mon<strong>um</strong>ento a<br />
<strong>um</strong> primeiro-ministro morto em circunstâncias trágicas. É inadmissível que se aproveite isso<br />
para fazer propaganda partidária. Deitem-na abaixo. Façam outra. Sem <strong>de</strong>mora.<br />
Quanto ao Cristo-Rei, não <strong>é</strong> pelo aspecto religioso que me pereturba. Claro que me parece<br />
<strong>de</strong>sa<strong>de</strong>quado impor <strong>um</strong> símbolo religioso a <strong>um</strong>a cida<strong>de</strong>, mas isso foi feito em circunstâncias<br />
políticas não <strong>de</strong>mocráticas. Já <strong>é</strong> mais ridículo que se tentasse emular o Cristo-Rei do Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro – esse sim, enquadrado na paisagem. Por alg<strong>um</strong>a razão este se transformou n<strong>um</strong> exlibris,<br />
coisa que não aconteceu com o seu primo do Pragal. É feio porque tem <strong>um</strong>a <strong>de</strong>sproporção<br />
enorme entre o “pe<strong>de</strong>stal” e a estátua, sendo que o próprio pe<strong>de</strong>stal <strong>é</strong> bisonho. Para mais, <strong>de</strong> há<br />
uns tempos para cá <strong>é</strong> il<strong>um</strong>inado à noite com luzes ver<strong>de</strong>-alface, daquelas que se usam nas<br />
montras das marisqueiras.<br />
Os católicos e outros cristãos não mereciam que o antigo regime e a hierarquia da Igreja da<br />
<strong>é</strong>poca prestassem tão mau serviço ao seu principal símbolo e figura exemplar. Para mais sempre<br />
ouvi o boato – po<strong>de</strong> não ser verda<strong>de</strong>iro – <strong>de</strong> que o sacerdote encarregado da colecta <strong>de</strong> fundos<br />
para a construção fugiu com o pecúlio para o Brasil. À procura da verda<strong>de</strong>ira estátua? Mas<br />
agora que já nos tínhamos habituado à presença do mon<strong>um</strong>ento, eis que algu<strong>é</strong>m quer armar-se<br />
em Kristo. O artista que “empacota” paisagens e edifícios, note-se, não Cristo com C. Tive<br />
acesso ao panfleto que anuncia o “Projecto ‘Vestir’ O Cristo Rei”, intitulado “Novas<br />
Descobertas”, da autoria <strong>de</strong> Jorge Fialho. A imagem <strong>é</strong> aterradora: preten<strong>de</strong>-se envolver o<br />
pe<strong>de</strong>stal do mon<strong>um</strong>ento com vários andares <strong>de</strong> velas com a cruz <strong>de</strong> Cristo, amarradas ao solo<br />
com grossos cordames presos por gigantescas âncoras. Nem a nova retórica da celebração dos<br />
<strong>de</strong>scobrimentos foi aproveitada: aqui trata-se claramente <strong>de</strong> justapor a imagem <strong>de</strong> Cristo à i<strong>de</strong>ia<br />
dos Descobrimentos. Regresso ao passado.<br />
O texto <strong>de</strong> apresentação do projecto, não sendo h<strong>um</strong>orístico, <strong>é</strong> <strong>de</strong> morrer a rir. O artista <strong>é</strong><br />
apresentado como “<strong>um</strong> português que reúne três qualida<strong>de</strong>s fundamentais à (sic) criação do<br />
projecto (...) – audácia, imaginação e perseverança. É já mesmo consi<strong>de</strong>rado o Fernão Men<strong>de</strong>s<br />
Pinto do S<strong>é</strong>c.XX”. O texto não vem assinado: quem <strong>é</strong> que o consi<strong>de</strong>ra como tal? Seguem-se<br />
projectos <strong>de</strong> <strong>um</strong>a “Fundação”; a Lei do Mecenato aplicar-se-á a eventuais apoiantes; haverá <strong>um</strong><br />
“autocarro-caravela” que difundirá o evento al<strong>é</strong>m-fronteiras; e <strong>é</strong> apresentado <strong>um</strong> plano<br />
económico dos impactos intitulado “Macro e micro-economias”. Pelo meio <strong>é</strong>-nos dito que “a<br />
evangelização das Novas Descobertas possibilitará a comunhão entre a religião e a cultura<br />
portuguesas, n<strong>um</strong> tempo em que há carência <strong>de</strong> f<strong>é</strong> e <strong>de</strong> noções <strong>de</strong> h<strong>um</strong>anida<strong>de</strong>”.<br />
Ora, <strong>de</strong>pois da pol<strong>é</strong>mica com a cena da última ceia no programa <strong>de</strong> Herman Jos<strong>é</strong>, fica-se com a<br />
impressão <strong>de</strong> que a Igreja Católica Romana está com medo <strong>de</strong> que a figura <strong>de</strong> Cristo lhe esteja a<br />
escapar: por <strong>um</strong> lado, não tem sido a principal no panteão da religiosida<strong>de</strong> portuguesa, mais<br />
preocupada com a figura <strong>de</strong> Maria ou com os Santos; por outro, está a ser reivindicada como<br />
figura central pelas novas igrejas evang<strong>é</strong>licas, como já o fora pelos Protestantes. Vestido <strong>de</strong><br />
caravela, suspeito que será o fim: grossa asneira para a Igreja, grossa asneira para o panorama<br />
<strong>de</strong> mau-gosto da nossa estatuária.<br />
27