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Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

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Com a mente sintonizada para a modalida<strong>de</strong> prospectiva, consigo antever as <strong>de</strong>silusões que<br />

terão grassado no dia em que esta crónica for publicada. Em primeiro lugar, o mundo não<br />

acabou. Para aqueles que sonhavam ou temiam o fim do mundo, este tornou a não acontecer,<br />

como há mil anos atrás. Milenaristas <strong>de</strong>primidos arrastam-se pelas ruas, <strong>de</strong>rrotados perante o<br />

facto <strong>de</strong> não po<strong>de</strong>rem esperar mais mil anos por outra oportunida<strong>de</strong>. Seitas inteiras<br />

<strong>de</strong>smoronam-se e, obviamente, outras aparecem. Desilusão.<br />

Em segundo lugar, o “bug” do ano 2000 não passou, afinal, <strong>de</strong> <strong>um</strong>a fantasia. A nova classe <strong>de</strong><br />

oligarquia científica gerada em torno da informática já tinha <strong>um</strong>a curiosa inclinação mística,<br />

talvez motivada pela virtualida<strong>de</strong> do universo em que trabalha. Os efeitos do “bug” eram <strong>um</strong>a<br />

oportunida<strong>de</strong> única <strong>de</strong> comprovar o imenso po<strong>de</strong>r oculto dos “bytes”. Só que os aviões não<br />

caíram mais do que o cost<strong>um</strong>e, os sorrisos palermas das caras <strong>de</strong> cartão dos ecrãs <strong>de</strong> multibanco<br />

não nos abandonaram e as coisas em geral funcionaram irritantemente bem. Desilusão.<br />

Em terceiro lugar, as festas não foram gran<strong>de</strong> coisa. Atarantadas em busca da festa por<br />

excelência, milhões <strong>de</strong> pessoas <strong>de</strong>ram por si próprias passando o ano na estrada, ou no percurso<br />

entre <strong>um</strong>a festa mais chata e outra mais promissora, ou vendo pífios festivais <strong>de</strong> pirotecnia<br />

promovidos pelos municípios e outras organizações do ramo do ilusionismo. Mesmo os que<br />

conseguiram <strong>um</strong> ambiente atraente e que se entregaram, afoitos, aos efeitos das mais diversas<br />

pílulas, aperceberam-se <strong>de</strong> que o momento da passagem do ano foi igual aos momentos das<br />

outras passagens dos outros anos. Desilusão.<br />

Por fim, o mundo não mudou para melhor. No dia 1 ou no dia 2 <strong>de</strong> Janeiro, milhões <strong>de</strong> pessoas<br />

tiveram que pagar os empr<strong>é</strong>stimos contraídos para a compra <strong>de</strong> casas absurdamente caras;<br />

arrastaram-se para dolorosas sessões <strong>de</strong> terapia <strong>de</strong> doenças incuráveis; distribuíram sacos <strong>de</strong><br />

arroz por famintos cujo número parece crescer exponencialmente; e taparam o nariz para não<br />

respirarem os f<strong>um</strong>os dos escapes <strong>de</strong> automóveis conduzidos por egocêntricos a caminho <strong>de</strong><br />

empregos alienantes. Desilusão.<br />

No dia 1 <strong>de</strong> Janeiro <strong>de</strong> 2000, passada a ressaca, milhões <strong>de</strong> pessoas perceberam que tinham que<br />

cuidar da vida. E as que já tinham a vida cuidada, aperceberam-se <strong>de</strong> que continuam obcecadas<br />

pelas mesmas coisas <strong>de</strong> sempre – o amor e a morte. Mas resta <strong>um</strong>a consolação, <strong>um</strong>a <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira<br />

esperança: a passagem <strong>de</strong> ano para 2001, quando <strong>um</strong> novo s<strong>é</strong>culo e <strong>um</strong> novo mil<strong>é</strong>nio<br />

começarem. Passada a gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>silusão, aposto que toda a gente vai começar a falar <strong>de</strong> como<br />

“afinal, o mil<strong>é</strong>nio só começa em 2001”. E <strong>um</strong> novo ciclo <strong>de</strong> altas expectativas começará. Somos<br />

uns bichos engraçados. “Bugs”, contaminados pela ilusão.<br />

Surpreendam-me, por favor.<br />

(“Jornal Torrejano”, 20.01.00)<br />

Entro no táxi, preparado mentalmente para vinte minutos <strong>de</strong> música pimba, e isto na hipótese<br />

optimista <strong>de</strong> o condutor não me violar com as suas opiniões sobre o combate ao crime ou as<br />

mulheres ao volante. Surpresa: não só a conversa <strong>de</strong>le se res<strong>um</strong>e ao mínimo – o que me permite<br />

bater o recor<strong>de</strong> pessoal n<strong>um</strong> jogo <strong>de</strong> telemóvel, confesso – como escuta música clássica. Isso<br />

mesmo. E a música clássica não <strong>é</strong> emitida pela “voz do outro mundo” em que se tornou a RDP<br />

2, mas sim por <strong>um</strong>a rádio do Montijo. Fiquei a saber que há música clássica no Montijo. E quem<br />

a oiça, nomeadamente <strong>um</strong> taxista.<br />

Nos últimos tempos ando muito atento a surpresas <strong>de</strong>stas. Procuro-as com espírito <strong>de</strong><br />

coleccionista. À noite, na cama, revejo o dia para <strong>de</strong>scobrir nele alg<strong>um</strong> valor (<strong>um</strong> velho hábito<br />

protestante, imagino, embora eu não o seja – mas o mundo está cheio <strong>de</strong> contradições). Um dos<br />

exercícios consiste em en<strong>um</strong>erar as surpresas h<strong>um</strong>anas, sendo que a mais surpreen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> todas<br />

<strong>é</strong> <strong>de</strong>scobrir que as há mais do que possa supor-se. Uma vez <strong>de</strong>scobri que <strong>um</strong>a apagada<br />

funcionária do meu local <strong>de</strong> trabalho era condutora <strong>de</strong> ralis nas horas vagas. Doutra, que <strong>um</strong> dos<br />

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