Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
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H <strong>é</strong> imensamente feliz. Por pouco pensou que não iria continuar a sê-lo: quando do nascimento<br />
<strong>de</strong> cada <strong>um</strong> dos filhos houve sempre <strong>um</strong> momento <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero e ansieda<strong>de</strong> na sala <strong>de</strong> espera,<br />
por causa da velha história <strong>de</strong> família sobre os antepassados caboverdianos. E se o puto sai<br />
assim meio escuro? Mas <strong>de</strong> ambas as vezes as coisas correram bem. Eles cresciam agora loiros<br />
e corados, a miúda cada vez mais gira, tão gira que era preciso começar a ter cuidado com as<br />
saídas <strong>de</strong>la, porque <strong>é</strong> certo e sabido que os rapazes ten<strong>de</strong>rão a aproveitar-se. E o miúdo, embora<br />
não tenha notas lá muito boas, tem aquela coisa que faz falta aos per<strong>de</strong>dores, que <strong>é</strong> a capacida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> li<strong>de</strong>rança. Está sempre ro<strong>de</strong>ado dos outros putos, <strong>é</strong> bom no <strong>de</strong>sporto e já apanhou a primeira<br />
bebe<strong>de</strong>ira, embora H tivesse tido que se zangar pelo <strong>de</strong>saparecimento da sua melhor garrafa <strong>de</strong><br />
whisky. Só o preocupa <strong>um</strong> bocado que o puto ainda não tenha namorada. Fica-lhe bem dizer<br />
que as miúdas não lhe interessam, que são <strong>um</strong>as chatas e <strong>um</strong>as mariquinhas, mas conv<strong>é</strong>m que<br />
não exagere. O i<strong>de</strong>al seria continuar a dizer isso mas tendo <strong>um</strong>a namorada. Teria que ter <strong>um</strong>a<br />
conversa com ele? Não: a mulher trataria disso.<br />
H <strong>é</strong> imensamente feliz. Gosta daqueles dias em que a corrida <strong>de</strong> ratos no escritório acalma e dá<br />
lugar a <strong>um</strong> fim <strong>de</strong> semana. Gosta <strong>de</strong> pegar no jipe e ir a casa dos pais com a mulher e os filhos e<br />
ouvir duas horas <strong>de</strong> elogios sobre o seu sucesso e o bom aspecto dos miúdos. Gosta <strong>de</strong> ir à<br />
missa e sentir-se purificado quando a hóstia começa a <strong>de</strong>rreter lentamente na boca. Gosta <strong>de</strong> ler<br />
o Expresso e pôr-se a par do <strong>de</strong>sporto, da economia, <strong>de</strong> vez em quando <strong>um</strong> pouco <strong>de</strong> política<br />
nacional. Passa os olhos pelas fotografias <strong>de</strong> guerra e fome, lá longe, bem longe. Gosta <strong>de</strong> ver<br />
<strong>um</strong> <strong>de</strong>bate na televisão e concordar com os pontos <strong>de</strong> vista mais liberais: essa agora, porque <strong>é</strong><br />
que as mulheres não hão-<strong>de</strong> ter os mesmos direitos, tu não te queixas, pois não, fofa? Essa<br />
agora, não percebo mesmo como <strong>é</strong> que há gente que <strong>é</strong> racista, nós at<strong>é</strong> temos antepassados em<br />
Cabo Ver<strong>de</strong>, sabias, não sabias? Essa agora, não me preocupa nada que dois gajos vão para a<br />
cama <strong>um</strong> com o outro e vivam juntos, olha, lembras-te do X, <strong>um</strong> gajo impecável, nem sequer<br />
era amaricado nem nada.A mulher termina a segunda máquina <strong>de</strong> lavar roupa. <strong>Este</strong>ve <strong>um</strong>a hora<br />
fechada no quarto com a filha. Uma conversa, com certeza, parece que a miúda teve o período<br />
pela primeira vez. Da cozinha chega o aroma <strong>de</strong> <strong>um</strong> bolo no forno. Corre para a agenda, on<strong>de</strong> a<br />
secretária lhe tinha escrito que não esquecesse do aniversário <strong>de</strong> casamento, no dia seguinte.<br />
Senta-se ao computador e encomenda flores pela internet. Dá <strong>um</strong>a espreita<strong>de</strong>la a <strong>um</strong> site <strong>de</strong> sexo<br />
com travestis, não percebe bem porquê mas aquele <strong>é</strong> o seu favorito, mexe sempre com ele.<br />
Traslada-se para a televisão e fica a ver <strong>um</strong> filme. Quando a mulher dá por concluídas as<br />
arr<strong>um</strong>ações do fim <strong>de</strong> semana, aninha-se junto <strong>de</strong>le no sofá e segreda-lhe que os miúdos já estão<br />
a dormir. Desaperta-lhe a gravata – que <strong>de</strong>ixou vestida por saber que a excita – abre-lhe a<br />
camisa, beija-lhe o peito. Evita que ela lhe toque os mamilos. Empurra gentilmente a cabeça<br />
<strong>de</strong>la para baixo. Sente <strong>um</strong>a erecção. A segunda (ou será a terceira?) do dia.<br />
H <strong>é</strong> imensamente feliz e não consegue perceber, por muito que lhe expliquem, porque <strong>é</strong> que<br />
nem toda a gente <strong>é</strong> assim.<br />
O futuro próximo, ou a falta <strong>de</strong> imaginação<br />
(Linhas Cruzadas, Revista da PT, 12.00)<br />
Para imaginar o futuro, há que analisar o presente. O futuro próximo não estará muito longe <strong>de</strong><br />
<strong>um</strong>a variação do presente: talvez com o aprofundamento <strong>de</strong> alg<strong>um</strong>as tendências; talvez com o<br />
começo <strong>de</strong> inversão <strong>de</strong> alg<strong>um</strong>as <strong>de</strong>las.<br />
A palavra globalização talvez seja a que melhor sintetiza o que se passa hoje e a tendência para<br />
o futuro próximo. Uma palavra vaga, mal-entendida. E feia. Ela quer simplesmente referir a<br />
intensificação e aprofundamento (sem esquecer o alargamento) <strong>de</strong> <strong>um</strong>a tendência que vem<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong>, pelo menos, o começo da expansão europeia. Trata-se da imparável expansão dos<br />
mercados ligados a <strong>um</strong> tipo <strong>de</strong> economia conhecido como capitalismo. Po<strong>de</strong>-se dizer que, hoje,<br />
o capitalismo atingiu finalmente a escala planetária. Mas fê-lo no momento em que se<br />
transformou. Hoje o que <strong>é</strong> <strong>de</strong>cisivo <strong>é</strong> a circulação financeira, atrav<strong>é</strong>s <strong>de</strong> mecanismos virtuais. O<br />
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