Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
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<strong>de</strong>sconfiado das minhas contas – acabou dando-me 40 cêntimos. “Mas olhe que fica a per<strong>de</strong>r 5<br />
cêntimos”, disse-lhe. “Não tem importância, não tem importância!” – e <strong>de</strong>spachou-me, agora<br />
que a livi<strong>de</strong>z dava lugar ao esver<strong>de</strong>ado da frustração e da cólera. Ele que, como todos os donos<br />
<strong>de</strong> pequenos caf<strong>é</strong>s mo<strong>de</strong>stos, nunca <strong>de</strong>ve ter perdoado <strong>um</strong> tostão...<br />
Para coroar o dia, pego <strong>um</strong> táxi para as Amoreiras. Dou <strong>um</strong>a nota <strong>de</strong> 10 para pagar.<br />
Automaticamente, o taxista dá-me o troco em escudos. Uma vez mais digo que não quero andar<br />
com duas moedas na carteira. Resposta embaraçada: “Ah, nós não temos disso. Eles ainda não<br />
nos <strong>de</strong>ram isso”. Não perguntei o que era “isso” nem tão pouco quem seriam “eles”. O dia já ia<br />
longo.<br />
Nas Amoreiras não houve problemas <strong>de</strong> esp<strong>é</strong>cie alg<strong>um</strong>a. No dia seguinte, ao falar com pessoas<br />
que vivem e circulam n<strong>um</strong>a zona <strong>de</strong> classe m<strong>é</strong>dia alta, as minhas estórias causaram surpresa.<br />
Afinal <strong>de</strong> contas, a minha experiência, por causa dos locais e meios on<strong>de</strong> tinha ocorrido, dava<br />
conta <strong>de</strong> <strong>um</strong>a realida<strong>de</strong> social. Dois aspectos relacionados com o nível sócio-económico das<br />
pessoas saltam à vista. Pimeiro, a ausência <strong>de</strong> familiarida<strong>de</strong> com moedas diferentes e os<br />
mecanismos básicos da conversão e da equivalência, por parte <strong>de</strong> quem provavelmente nunca<br />
saiu do país, nem sequer at<strong>é</strong> à Badajoz das pesetas; segundo, o grau <strong>de</strong> iliteracia, sobretudo<br />
aritm<strong>é</strong>tica, para não dizer matemática. Graças à chegada da novida<strong>de</strong> europeia <strong>de</strong> maior impacto<br />
at<strong>é</strong> hoje, a escuridão salazarista voltava à tona: isolamento, conservadorismo, preguiça mental,<br />
medo da mudança. Mas, sobretudo, iliteracia.<br />
Penosamente, o país arrasta consigo o lastro da política do velho vampiro. E não houve paixão<br />
pela educação que <strong>de</strong>sse a volta à coisa. Aos “centímetros”, pois.<br />
Direito ao aborto<br />
(Webpage, 13.02.02)<br />
N<strong>um</strong>a carta dirigida ao director do “Público”, Rui Zink coloca dois <strong>de</strong>safios provocatórios a<br />
Jos<strong>é</strong> Manuel Fernan<strong>de</strong>s, campeão do neo-liberalismo pós-estalinista (ou do neo-estalinismo pósliberal?).<br />
Primeiro, pergunta-se porque não se comparam as sentenças proferidas pela justiça:<br />
pouco tempo antes da con<strong>de</strong>nação a oito anos da enfermeira do caso da Maia, <strong>um</strong> homem que<br />
havia morto a mulher e o namorado fora con<strong>de</strong>nado a ... quatro anos. O segundo <strong>de</strong>safio surgia<br />
sob a forma <strong>de</strong> <strong>um</strong> pedido: que o jornal informasse se a enfermeira realizava os abortos em boas<br />
condições higi<strong>é</strong>nicas e <strong>de</strong> segurança. Isto <strong>é</strong>: não estaria ela a prestar <strong>um</strong> serviço a que o Estado<br />
se exime?<br />
Precisamos <strong>de</strong> mais perguntas e <strong>de</strong>safios <strong>de</strong>ste tipo. Estou mesmo convencido que o movimento<br />
pelo direito <strong>de</strong> optar não vingou (ainda) porque as e os militantes estão <strong>de</strong>masiado presos a duas<br />
(i)lógicas. A primeira <strong>é</strong> a confusão entre o sentimento pessoal e a política social: <strong>é</strong> claro que<br />
ningu<strong>é</strong>m gosta <strong>de</strong> abortar e <strong>é</strong> claro que <strong>é</strong> melhor prevenir que remediar. Mas que interessa isso<br />
quando o que está em causa são situações em que já não se po<strong>de</strong> prevenir? E em que se tem que<br />
fazer o que não se gosta para evitar <strong>um</strong> <strong>de</strong>sgosto ainda maior? A segunda <strong>é</strong> tentar lidar com os<br />
arg<strong>um</strong>entos pró-vida com arg<strong>um</strong>entos que participam do mesmo campo discursivo. Refiro-me, <strong>é</strong><br />
claro, à questão da “vida” e ao receio em confrontar a (i)lógica religiosa. Quando Camille Paglia<br />
diz que não percebe como se po<strong>de</strong> ser pró-aborto e contra a pena <strong>de</strong> morte, apetece retorquir<br />
com o inverso. Mas, a meu ver, não se <strong>de</strong>ve: porque não se trata <strong>de</strong> <strong>um</strong>a questão <strong>de</strong> “vida” mas<br />
<strong>de</strong> <strong>um</strong>a questão <strong>de</strong> algo que acontece ao, e no, corpo <strong>de</strong> <strong>um</strong>a mulher e que não <strong>é</strong> in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte<br />
<strong>de</strong>la.<br />
Há coisas que precisam ser ditas aos pró-vida. Com <strong>um</strong>a urgência que po<strong>de</strong> – se calhar, <strong>de</strong>ve –<br />
admitir radicalida<strong>de</strong> e mesmo raiva. Pela parte que me toca, não tenho paciência para o<br />
arg<strong>um</strong>ento da vida. É claro que, no sentido estrito, qualquer amálgama <strong>de</strong> c<strong>é</strong>lulas (que digo eu?,<br />
<strong>um</strong>a c<strong>é</strong>lula) <strong>é</strong> vida. Ora, se a base arg<strong>um</strong>entativa <strong>de</strong>les <strong>é</strong> a coerência entre o conceito e a sua<br />
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