Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
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fantástico, <strong>é</strong> <strong>um</strong> <strong>de</strong>safio intelectual que ainda ningu<strong>é</strong>m levou às últimas conseqüências culturais<br />
(os historiadores já o fizeram para o aspecto econômico). A segunda questão fundamental: a<br />
experiência colonial está viva nas pessoas hoje em dia, por isso po<strong>de</strong> ser <strong>um</strong> trabalho<br />
antropológico e não <strong>um</strong> trabalho <strong>de</strong> história. Isso <strong>é</strong> importantíssimo, porque tamb<strong>é</strong>m temos <strong>um</strong>a<br />
in<strong>de</strong>pendência do Brasil prematura, com a formação simultânea do Estados-nação mo<strong>de</strong>rno no<br />
Brasil e em Portugal e <strong>de</strong>pois temos o colonialismo propriamente dito na África. São duas<br />
realida<strong>de</strong>s diferentes que permitem comparações interessantes. A minha id<strong>é</strong>ia <strong>é</strong> conseguir,<br />
eventualmente, pegar <strong>um</strong> contexto colonial específico, suficientemente pequeno para permitir<br />
<strong>um</strong>a estrat<strong>é</strong>gia clássica da antropologia. Mas estou falando <strong>de</strong> coisas que vão acontecer daqui a<br />
5 ou 6 anos, por enquanto quero escrever sobre o Brasil...<br />
Mariza – Você não pensou em trabalhar sobre os Açores?<br />
<strong>Miguel</strong> – Os Açores foram e são <strong>um</strong>a transposição <strong>de</strong> Portugal, <strong>um</strong> território europeu, nãocolonial.<br />
Quanto a Cabo Ver<strong>de</strong>, em primeiro lugar, tratava-se <strong>de</strong> ilhas <strong>de</strong>sertas <strong>de</strong>scobertas pelos<br />
portugueses que, para as colonizar (elas serviam como ponto <strong>de</strong> passagem na rota atlântica),<br />
levaram africanos para Cabo Ver<strong>de</strong>. A miscigenação que se <strong>de</strong>u viria a resultar n<strong>um</strong>a<br />
ambigüida<strong>de</strong> entre o que, nos projetos nacionais e nacionalistas, se po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>finir como<br />
africanida<strong>de</strong> versus europeinida<strong>de</strong> versus mestiçagem. Em segundo lugar, no processo do<br />
colonialismo tardio português na África (ou seja, na tentativa <strong>de</strong> administrar <strong>de</strong> fato as colônias<br />
<strong>de</strong>pois do ultimato inglês do s<strong>é</strong>culo XIX, que <strong>é</strong> <strong>um</strong> processo político on<strong>de</strong> a Inglaterra<br />
reivindica as colônias portuguesas se elas não forem ocupadas – e elas não estavam ocupadas, já<br />
o Brasil estava perdido -, <strong>de</strong> fato, o esforço <strong>de</strong> colonização português <strong>de</strong> Angola e Moçambique<br />
envolveu. a utilização <strong>de</strong> quadros intermediários <strong>de</strong> administração colonial em que os<br />
caboverdianos ocuparam <strong>um</strong> papel importante. Os caboverdianos são fornecidos como quadros<br />
interm<strong>é</strong>dios da administração colonial, em Angola por exemplo, para os postos que são<br />
justamente os mais <strong>de</strong>licados do ponto <strong>de</strong> vista político nas relações raciais e coloniais. Eles são<br />
intermediários porque eles tinham <strong>um</strong>a educação portuguesa e <strong>um</strong>a africanida<strong>de</strong>, digamos,<br />
“não-hegemônica”. Por outro lado, do ponto <strong>de</strong> vista das classificações fenotípicas, eles são<br />
mestiços, então <strong>de</strong>u-se como que <strong>um</strong>a projeção <strong>de</strong> que eles eram as pessoas certas para fazer a<br />
intermediação (sem esquecer, claro, questões sócioeconômicas mais estruturais). Seria preciso<br />
explicar <strong>um</strong> pouco o contexto português atual, mas a guerra colonial está neste momento<br />
funcionando em Portugal ao nível da memória coletiva, semelhante ao nazismo e ao holocausto<br />
para os alemães, como <strong>um</strong>a esp<strong>é</strong>cie <strong>de</strong> tra<strong>um</strong>a que finalmente está emergindo e ele emerge<br />
justamente por causa do fluxo <strong>de</strong> imigrantes para Portugal, ele emerge em conjunção com o<br />
surgimento do racismo explícito e <strong>de</strong> <strong>um</strong> movimento anti-racista. Nesse contexto, o<br />
caboverdiano tem sido construído simultaneamente como o Outro por excelência e como o<br />
produto da mestiçagem luso-tropical por excelência. É diabo e anjo ao mesmo tempo.<br />
Mariza – É forte o movimento anti-racista?<br />
<strong>Miguel</strong>- Não está mal... mas <strong>é</strong> problemático, porque <strong>é</strong> <strong>um</strong> movimento que precisa do racismo<br />
para existir, tem <strong>um</strong> certa tendência para inventá-lo, isso <strong>é</strong> problemático e <strong>é</strong> problemático dizêlo<br />
publicamente. Voltando àquele caso, Amílcar Cabral criou a id<strong>é</strong>ia que a in<strong>de</strong>pendência iria<br />
ser <strong>de</strong> Guin<strong>é</strong> Bissau e Cabo Ver<strong>de</strong> como <strong>um</strong> só país e, <strong>de</strong> fato, em 1975 dá-se a in<strong>de</strong>pendência<br />
<strong>de</strong> Guin<strong>é</strong> Bissau e Cabo Ver<strong>de</strong> como <strong>um</strong> só país. Dois anos <strong>de</strong>pois Cabo Ver<strong>de</strong> autonomiza-se e<br />
torna-se in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da Guin<strong>é</strong> Bissau, há <strong>um</strong>a cisão e a cisão <strong>é</strong> manifestamente racial, <strong>é</strong><br />
racializada, tem a ver com as elites caboverdianas, que se vêem a si próprias como híbridas,<br />
crioulas, e esse híbrido <strong>é</strong> feito na base <strong>de</strong> <strong>um</strong>a apropriação única ao nível colonial do nosso<br />
conhecido lusotropicalismo, quer dizer, o luso-tropicalismo <strong>é</strong> apropriado pela elite<br />
caboverdiana. Tanto que o conflito cultural em Cabo Ver<strong>de</strong> hoje parece ser justamente entre as<br />
tendências da negritu<strong>de</strong> e da africanida<strong>de</strong> e as tendências mais viradas para Portugal, inclusive<br />
ao ponto <strong>de</strong> haver pessoas que propõem que a in<strong>de</strong>pendência possa ter sido <strong>um</strong> erro. Isto está<br />
me interessando muito, porque mais do que coisas politicamente corretas anti-coloniais, a minha<br />
intenção <strong>é</strong> ver as confusões, como <strong>é</strong> que <strong>de</strong> fato se dá a constituição mútua <strong>de</strong> colonizado e<br />
colonizador... O gênero entra aqui atrav<strong>é</strong>s da racialização do gênero ou da “gen<strong>de</strong>rificação” da<br />
raça. Tem que ver com toda <strong>um</strong>a análise crítica do uso do luso-tropicalismo. É tudo sexualizado,<br />
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