13.04.2013 Views

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Na minha activida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cronista, tem-me surpreendido o facto <strong>de</strong> as reacções escritas dos<br />

leitores serem poucas (<strong>de</strong>ixo <strong>de</strong> lado as pol<strong>é</strong>micas com colegas <strong>de</strong> activida<strong>de</strong>, <strong>um</strong>a categoria<br />

muito diferente <strong>de</strong> leitores). Será isto <strong>um</strong> indício <strong>de</strong> <strong>um</strong>a cultura da oralida<strong>de</strong>, em que a escrita<br />

não <strong>é</strong> cultivada? Esta <strong>é</strong> <strong>um</strong>a hipótese, já que a outra – bem pior – seria o completo <strong>de</strong>sinteresse<br />

dos textos.... De entre as formas <strong>de</strong> reagir pela escrita, há duas bem diferentes: as cartas<br />

dirigidas à secção <strong>de</strong> correio dos leitores do jornal e as cartas enviadas pessoalmente ao cronista.<br />

As primeiras <strong>de</strong>notam o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> publicação, <strong>de</strong> expressão ass<strong>um</strong>ida <strong>de</strong> <strong>um</strong>a opinião. São as<br />

que fornecem os sinais mais optimistas quanto à vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> participação dos cidadãos.<br />

As segundas divi<strong>de</strong>m-se em duas categorias: as anónimas e as assinadas. As últimas são, no<br />

geral, expressões <strong>de</strong> apreço. O leitor manifesta <strong>um</strong>a esp<strong>é</strong>cie <strong>de</strong> comunhão afectiva com as<br />

opiniões do cronista; a<strong>de</strong>re ao seu “clube”. Outras há que se reportam a assuntos muito<br />

concretos, regra geral apenas aflorados n<strong>um</strong>a crónica. Por exemplo, <strong>um</strong>a senhora envia <strong>um</strong>a<br />

carta sobre a importância das árvores e <strong>um</strong>a foto <strong>de</strong> <strong>um</strong> especimen precioso em risco <strong>de</strong> ser<br />

<strong>de</strong>struído. Trata-se da <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> <strong>um</strong>a “causa” específica. Do cronista espera-se que torne essa<br />

causa socialmente relevante. “Afectivos” ou “militantes” – bem hajam: em cada carta escrita há<br />

<strong>um</strong> cidadão preocupado.<br />

Todavia, o que fascina, assusta e preocupa são as cartas anónimas. <strong>Bem</strong> sei que a atitu<strong>de</strong><br />

correcta <strong>é</strong> não as ler e <strong>de</strong>itá-las fora com o envelope ainda virgem. Só que eu não resisto à<br />

tentação – e leio-as. E pasmo. Pasmo sobretudo com o facto <strong>de</strong> as cartas anónimas constituirem<br />

a maior parte do meu mo<strong>de</strong>sto correio. E morro <strong>de</strong> curiosida<strong>de</strong> por saber quem são estas pessoas<br />

que assim diluem a sua individualida<strong>de</strong>. Por via <strong>de</strong> regra o conteúdo <strong>é</strong> insultuoso ou expressivo<br />

<strong>de</strong> <strong>um</strong>a opinião que o próprio consi<strong>de</strong>ra tão escandalosa que tem receio <strong>de</strong> a subscrever. Ao<br />

prescindir da individualida<strong>de</strong>, o seu autor acaba por ser <strong>um</strong>a caixa <strong>de</strong> ressonância <strong>de</strong><br />

estereótipos sociais. E o anonimato ajuda a reproduzir a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que certas questões não<br />

existem na nossa socieda<strong>de</strong>.<br />

São todas sobre homossexualida<strong>de</strong> ou sobre judaísmo. Há-as escritas por loucos, como a própria<br />

caligrafia parece indicar. Mas há-as escritas por gente que articula as suas i<strong>de</strong>ias, por muito<br />

troglodíticas que estas possam ser consi<strong>de</strong>radas. Os insultos aos homossexuais não me<br />

espantam: participam <strong>de</strong> <strong>um</strong>a raiva profunda que dá pelo nome <strong>de</strong> homofobia. O que assusta<br />

mais <strong>é</strong> a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reagir contra a <strong>de</strong>fesa pública dos direitos dos homossexuais. O autor <strong>de</strong><br />

<strong>um</strong>a carta anónima <strong>é</strong> tamb<strong>é</strong>m o mais feroz inimigo dos direitos <strong>de</strong> cidadania. Por outro lado, à<br />

partida não se compreen<strong>de</strong> porque aflora tanto anti-semitismo em Portugal. A não ser que a<br />

explicação seja a amn<strong>é</strong>sia social criada ao longo <strong>de</strong> s<strong>é</strong>culos para ocultar o fundo judaico da<br />

nossa cultura. Dos leitores não-anónimos apenas <strong>um</strong> se referiu ao assunto – mas para “explicar”,<br />

em <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> páginas <strong>de</strong> “erudição” revisionista, que o Holocausto nunca aconteceu....<br />

Há, por fim, <strong>um</strong> aspecto interpretativo com<strong>um</strong> a todas as reacções escritas: nota-se que o sentido<br />

<strong>de</strong> h<strong>um</strong>or não <strong>é</strong> o forte. Sobretudo o sentido da ironia. Demasiadas pessoas levam <strong>de</strong>masiado “a<br />

s<strong>é</strong>rio” o que <strong>é</strong> escrito. Claro que o problema po<strong>de</strong> ser a inaptidão do cronista para transmitir as<br />

figuras da ironia. Mas nota-se que não <strong>é</strong> isso quando as reacções levam “a s<strong>é</strong>rio” as ocasiões em<br />

que o cronista diz que faz ou pensa coisas que pensa ser óbvio não fazer e não pensar (nunca<br />

queimei, <strong>de</strong> facto, a Cartilha <strong>de</strong> João <strong>de</strong> Deus...). A provocação pedagógica, a pessoalização ou<br />

o exagero parecem ser mal vistos ou mal entendidos entre nós.<br />

Os leitores que me perdoem tê-los usado como “cobaias”. Aos anónimos, por<strong>é</strong>m, <strong>é</strong> logicamente<br />

impossível pedir <strong>de</strong>sculpa, pois não existem. “Pero que los hay, los hay”, lá fora, no mundo real.<br />

Mas fica o agra<strong>de</strong>cimento a quem o faz e <strong>um</strong> apelo a quem o não faz: leiam, escrevam, opinem,<br />

assinem. Para darmos conteúdo à expressão “socieda<strong>de</strong> civil”.<br />

Cartilha Expresso<br />

(Público, 10.03.96)<br />

15

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!