13.04.2013 Views

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Os dois portugais<br />

(“Portugal Diário”, 2001)<br />

Foi com atraso e espanto que cheguei à questão da ponte <strong>de</strong> Castelo <strong>de</strong> Paiva. Tranquila e<br />

voluntariamente recluso em casa, ao abrigo do frio <strong>de</strong> Boston, preguicei nas consultas<br />

internáuticas <strong>de</strong> jornais portugueses e não ganhei coragem para sintonizar os disparates<br />

coloridos da RTP Internacional. O drama nacional chegou-me, pois, por curiosas vias: as vozes<br />

dos que, regularmente, telefonavam <strong>de</strong> Portugal. Eu dava-lhes notícias pessoais, eles falavamme<br />

da ponte. Eu contava-lhes como corria a recuperação <strong>de</strong> <strong>um</strong>a cirurgia, eles falavam-me da<br />

ponte. Como se as suas vidas, altos e baixos, i<strong>de</strong>ias brilhantes ou coscuvilhices se tivessem<br />

afundado com o autocarro. Haviam-se-lhes afundado os alicerces, aos meus interlocutores.<br />

Não <strong>de</strong>morei muito a perceber o que nos separava: eles estavam colados às emissões das<br />

televisões portuguesas, eu não. Mais: mesmo não estando colados às ditas, <strong>de</strong>vem ter sido<br />

massacrados pelas conversas <strong>de</strong> caf<strong>é</strong> e autocarro, pelos telefonemas com amigos e familiares,<br />

nos intervalos do trabalho ou pelos noticiários das rádios. Não <strong>é</strong> novida<strong>de</strong> que os mass media<br />

criam a realida<strong>de</strong> e hierarquizam-na. Tão pouco <strong>é</strong> novida<strong>de</strong> que eles são capazes <strong>de</strong> criar o<br />

próprio espírito <strong>de</strong> corpo nacional, a sensação <strong>de</strong> pertença a <strong>um</strong> colectivo, mesmo não se<br />

conhecendo as pessoas entre si. Po<strong>de</strong>r-se-ia mesmo dizer que, sem eles, os portugueses não<br />

sentiriam que são portugueses. Já tínhamos visto isso com os campeonatos internacionais <strong>de</strong><br />

futebol. Já tínhamos visto isso com o movimento pró-Timor. Mas agora vimos isso <strong>de</strong> novo com<br />

<strong>um</strong> aci<strong>de</strong>nte rodoviário.<br />

Parece-me incontestável que o drama da ponte falou, sobretudo, da importância da televisão na<br />

constituição <strong>de</strong> <strong>um</strong> espírito <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong> em Portugal. Não <strong>é</strong> preciso pensar muito para<br />

perceber porquê: afinal <strong>de</strong> contas lê-se pouco, estuda-se pouco e o espírito comunitário ou o<br />

associativismo não serão o nosso forte. Na quase ausência <strong>de</strong> <strong>um</strong>a cultura da comunicação com<br />

suporte escrito, e no estado actual <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconfiança da coisa política, a TV ocupa o espaço vazio.<br />

Paradoxalmente, ao mesmo tempo que suga as pessoas para casa, para o sofá e para a<br />

contemplação individual, cria <strong>um</strong>a ligação entre todos esses átomos ou zombies.<br />

Mas o drama falou <strong>de</strong> outra coisa. E nisso as televisões souberam estar atentas aos eventos cuja<br />

carga simbólica <strong>é</strong> a mais forte e a<strong>de</strong>quada para sintetizar o “estado da nação”. Elas souberam<br />

adivinhar naquelas mortes, naquele colapso <strong>de</strong> <strong>um</strong>a ponte mal cuidada, naquela mudança do<br />

leito do rio, o outro lado da ilusão <strong>de</strong> progresso e festa em que o país viveu nos últimos anos.<br />

Afinal os locais remotos continuam a existir. Assim como as más estradas, a fiscalização<br />

<strong>de</strong>ficiente, a negligência. Em s<strong>um</strong>a, o sub<strong>de</strong>senvolvimento. Mesmo sabendo nós que <strong>de</strong>sastres<br />

<strong>de</strong>stes acontecem em todo o lado e at<strong>é</strong> mais noutros países do que entre nós, o que interessa <strong>é</strong><br />

que o drama social <strong>de</strong> Castelo <strong>de</strong> Paiva foi a coisa certa para o momento certo.<br />

Quase ao mesmo tempo, todavia, os meus interlocutores telefónicos, que não se ficavam pelas<br />

emissões em directo da ponte (no caso improvável, <strong>é</strong> claro, <strong>de</strong> as televisões darem importância a<br />

outros assuntos) falavam-me excitadamente <strong>de</strong> outro pequeno “drama”: a extensão da lei das<br />

uniões <strong>de</strong> facto aos homossexuais. Era todo <strong>um</strong> outro país que se me apresentava: mo<strong>de</strong>rno,<br />

cosmopolita, preocupado com os direitos das pessoas e com gosto pela promoção das<br />

diferenças. Há apenas <strong>de</strong>z anos atrás não havia em Portugal movimento gay. Hoje não só ele<br />

existe, como já saíu à rua, já ajudou muita gente a sentir-se melhor consigo própria, e já fez<br />

muita pedagogia em cabeças mais empe<strong>de</strong>rnidas. Finalmente, atingiu o parlamento e alcançou o<br />

nível da dignida<strong>de</strong> cívica e política. E com esta conquista verificou-se que o país não entrou em<br />

colapso, não se afundaram os alicerces, não se entrou n<strong>um</strong>a batalha campal.<br />

O que só po<strong>de</strong> conduzir o raciocínio n<strong>um</strong> sentido. Portugal <strong>é</strong> hoje o que dantes se chamava <strong>um</strong>a<br />

socieda<strong>de</strong> dual. Nas esferas cosmopolitas do po<strong>de</strong>r, do saber, da autonomia individual e da<br />

liberda<strong>de</strong> – na Cida<strong>de</strong> ou na Pólis, em s<strong>um</strong>a – vamos <strong>de</strong> vento em poupa, mesmo quando a<br />

vertigem da velocida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixa por resolver questões fundamentais (basta pensar que em<br />

74

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!