Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
PROF. MIGUEL VALE DE ALMEIDA: Um dos temas que sempre me interessou foi o dos<br />
processos <strong>de</strong> naturalização do po<strong>de</strong>r, ou seja, as explicações que o senso com<strong>um</strong> dá para as<br />
relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, para o facto <strong>de</strong> haver pessoas com mais ou menos po<strong>de</strong>r, dinheiro ou direitos.<br />
O senso com<strong>um</strong> – a i<strong>de</strong>ologia que circula no homem da rua e que <strong>é</strong> muitas vezes adoptada pelo<br />
Estado e at<strong>é</strong> pelas próprias Ciências Sociais – diz-nos que as coisas são assim porque está fora<br />
do nosso alcance mudá-las porque existe qualquer coisa na natureza das pessoas que as faz<br />
serem <strong>de</strong> <strong>um</strong> certo modo. Uma área on<strong>de</strong> isso <strong>é</strong> manifesto, on<strong>de</strong> o discurso crítico das Ciências<br />
Sociais não conseguiu chegar a mudar as mentalida<strong>de</strong>s das pessoas, <strong>é</strong> naquilo que chamamos<br />
“relações <strong>de</strong> g<strong>é</strong>nero” – homens/mulheres, heterossexuais/homossexuais, etc. As pessoas<br />
continuam a achar que a explicação para as diferenças <strong>de</strong> direitos e <strong>de</strong>veres <strong>de</strong> homens e<br />
mulheres resi<strong>de</strong> na biologia, na fisiologia, na natureza, na evolução h<strong>um</strong>ana, na diferença do<br />
corpo. Em Antropologia tentamos explicar os processos sociais que fazem com que, em sítios<br />
diferentes e em <strong>é</strong>pocas difrentes, homens e mulheres tenham tido direitos e <strong>de</strong>veres<br />
completamente diferentes. Esta variação, só por si, explica que o processo não <strong>é</strong> biológico.<br />
Interesso-me pelos aspectos da construção cultural da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> dos sexos. Fiz <strong>um</strong> primeiro<br />
estudo n<strong>um</strong>a al<strong>de</strong>ia alentejana, tentando i<strong>de</strong>ntificar qual era o mapa <strong>de</strong> valores que orientavam a<br />
i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> ser homem. Ainda nesta linha <strong>de</strong> investigação, solicitei a colegas meus que<br />
reanalisassem trabalhos seus para i<strong>de</strong>ntificarem formas <strong>de</strong> incorporação, i. e., <strong>de</strong> como as<br />
pessoas apren<strong>de</strong>m a reproduzir certos valores atrav<strong>é</strong>s do corpo. <strong>Este</strong> estudo <strong>de</strong>u origem à<br />
publicação do livro Corpo Presente. A “incorporação” <strong>é</strong> <strong>um</strong>a aprendizagem que não se faz <strong>de</strong><br />
forma verbalizada nem escrita, ao contrário do resto da cultura, e que por isso <strong>é</strong> mais difícil <strong>de</strong><br />
i<strong>de</strong>ntificar. Apren<strong>de</strong>-se atrav<strong>é</strong>s da imitação, inconscientemente, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> criança. O próprio corpo<br />
acaba por funcionar <strong>de</strong> certos modos que legitimam as i<strong>de</strong>ias sobre o comportamento dos sexos<br />
ou sobre as raças, etc. Po<strong>de</strong>mos dizer que os corpos apren<strong>de</strong>m, por exemplo, a ser ricos e<br />
pobres.<br />
APDH – Po<strong>de</strong> dar-nos <strong>um</strong> exemplo?<br />
MVA – O processo <strong>é</strong> mais ou menos assim: ao nível i<strong>de</strong>ológico, na nossa socieda<strong>de</strong>, existe este<br />
dogma; embora tenhamos direitos iguais para ambos os sexos, existe <strong>um</strong> limite biológico<br />
porque os homens são mais fortes do que as mulheres. É <strong>um</strong>a i<strong>de</strong>ia do senso com<strong>um</strong> que se<br />
preten<strong>de</strong> provar com a evidência dos corpos: repara como o homem carrega com tanto peso e a<br />
mulher não. Isto significa que os corpos apren<strong>de</strong>ram a <strong>de</strong>monstrar a i<strong>de</strong>ia que existe sobre eles:<br />
os homens foram treinados, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> pequenos, a carregar gran<strong>de</strong>s pesos e as mulheres não. Nada<br />
nos diz que, se o treino tivesse sido ao contrário, não se teriam obtido resultados precisamente<br />
inversos. Quando estudamos outras socieda<strong>de</strong>s e outras culturas <strong>de</strong>scobrimos que as coisas nem<br />
sempre foram assim.<br />
APDH – Em termos sociais como <strong>é</strong> que o corpo “apren<strong>de</strong>” a ser rico ou pobre?<br />
MVA – Os grupos sociais têm tendência a afastar-se uns dos outros, mantendo reduzidas zonas<br />
<strong>de</strong> contacto. Apesar <strong>de</strong> serem pouco rigorosos, vou utilizar os termos rico e pobre. Por que <strong>é</strong> que<br />
os ricos e os pobres se comportam <strong>de</strong> formas tão diferentes? Por que <strong>é</strong> que percebemos que <strong>um</strong>a<br />
pessoa <strong>é</strong> <strong>de</strong> origem h<strong>um</strong>il<strong>de</strong> pela maneira como se mexe? Porque esses grupos não contactam<br />
muito entre si, para al<strong>é</strong>m <strong>de</strong> situações <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>: no trabalho (os pobres trabalham para os<br />
ricos) ou nas relações institucionais (n<strong>um</strong>a repartição pública notamos quem tem mais ou menos<br />
capacida<strong>de</strong> para manipular aquele terreno, e isso tem a ver com a sua origem social). Os contactos<br />
são tão reduzidos que as pessoas reproduzem as suas gestualida<strong>de</strong>s, os seus<br />
comportamentos, as suas maneiras <strong>de</strong> vestir, <strong>de</strong> falar, os seus dialectos, etc., <strong>de</strong>ntro do próprio<br />
grupo. Essa <strong>é</strong> <strong>um</strong>a das formas <strong>de</strong> garantir a diferenciação entre classes ou grupos.<br />
APDH – Será que se po<strong>de</strong> dizer que o corpo absorve a mentalida<strong>de</strong> da classe dominante? É<br />
possível catalogar a mentalida<strong>de</strong> da classe dominante?<br />
MVA – É <strong>um</strong>a realida<strong>de</strong> que quanto maior for a diferença social, maior <strong>é</strong> a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong><br />
existente. Os grupos sociais afastam-se e reproduzem a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>. Por exemplo: embora<br />
reconheçamos que as diferenças sociais acabaram, as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>um</strong>a pessoa <strong>de</strong> classe<br />
alta casar com <strong>um</strong>a pessoa <strong>de</strong> classe baixa são quase nulas. O contacto entre elas <strong>é</strong> mínimo e,<br />
219