Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Tentando escapar a tudo isto, os movimentos pró-escolha elaboraram a sua táctica em torno da<br />
questão da saú<strong>de</strong> reprodutiva, da <strong>de</strong>núncia <strong>de</strong> situações dramáticas entre as mulheres, dos<br />
pontos <strong>de</strong> vista clínico, psicológico e social. Ao fazerem-no, abriram o campo ao discurso<br />
hegemónico, pois a resolução <strong>de</strong>sses problemas po<strong>de</strong> ser sempre partilhada por todos os campos<br />
e remetida para áreas <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão que não a legislação sobre a IVG. Al<strong>é</strong>m disso, a luta pelo<br />
aborto tem sido centrada na <strong>de</strong>spenalização, o que permite a “reserva mental” <strong>de</strong> aceitar o<br />
aborto como acto pelo menos ilícito (se não mesmo criminoso). Neste quadro, o capital cultural,<br />
social e <strong>de</strong> influência dos sectores anti-aborto mant<strong>é</strong>m-se fortíssimo. Por <strong>um</strong> lado, porque<br />
qualquer fundamentalismo (como o da “vida”) <strong>é</strong> <strong>um</strong>a resposta simples, facilita a união e<br />
dispensa a crítica, a dúvida, a “nuance”; por outro lado, porque o discurso anti-aborto tem<br />
assegurado o seu meio ambiente <strong>de</strong> reprodução nas estruturas familiares tradicionais, nas<br />
relações <strong>de</strong> g<strong>é</strong>nero retrógradas, nas concepções patriarcais sobre feminilida<strong>de</strong> e maternida<strong>de</strong>, na<br />
repressão da sexualida<strong>de</strong>, na hipocrisia da não-relação entre vida pública e privada, no sistema<br />
m<strong>é</strong>dico e legal, na influência da Igreja Católica.<br />
O problema central do movimento pró-escolha em Portugal parece, pois, ser o facto <strong>de</strong> estar<br />
prisioneiro <strong>de</strong> <strong>um</strong>a lógica <strong>de</strong> busca <strong>de</strong> mínimos <strong>de</strong>nominadores comuns: a diminuição do<br />
sofrimento das mulheres, a jusante da garantia ou não dos seus direitos. A actual situação <strong>é</strong> toda<br />
ela <strong>um</strong> pacote <strong>de</strong> más notícias: <strong>de</strong>nota a fraqueza do movimento feminista no nosso país; <strong>de</strong>nota<br />
o conservadorismo cultural e sexual <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> parte da nossa esquerda; <strong>de</strong>nota o po<strong>de</strong>r e a<br />
influência <strong>de</strong> forças conservadoras como a Igreja Católica; <strong>de</strong>nota a ausência <strong>de</strong> educação<br />
sexual; e <strong>de</strong>nota a fraqueza da nossa cidadania e o à-vonta<strong>de</strong> com que se aceita que sejam<br />
sobretudo as mulheres a sofrerem com essa falta. Provavelmente não iremos muito longe com o<br />
arg<strong>um</strong>ento da fraqueza do movimento feminista. Se <strong>é</strong> fraco <strong>é</strong> porque... <strong>é</strong> fraco, e a única coisa<br />
que há a fazer <strong>é</strong> reforçá-lo. Parece-me, todavia, que as mesmas razões que levaram a que esse<br />
movimento tivesse sido fraco em Portugal, são as que po<strong>de</strong>rão levar a que surja entre nós outro<br />
tipo <strong>de</strong> movimentação, mais abrangente e focada em assuntos como o aborto. Que quero dizer<br />
com isto?<br />
Portugal <strong>é</strong> <strong>um</strong> país que ficou, como sabemos, na quase pr<strong>é</strong>-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> em muitos aspectos e<br />
saltou directamente para a pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> noutros. Como já vai sendo hábito ouvir-se dizer, <strong>é</strong><br />
o país dos telemóveis e da proibição do aborto; <strong>é</strong> o país com <strong>um</strong>a das maiores taxas <strong>de</strong> emprego<br />
feminino, mas on<strong>de</strong> as mulheres usufruem <strong>de</strong> menos direitos. Significa isto que não tivemos o<br />
quadro social necessário para o surgimento <strong>de</strong> <strong>um</strong> movimento feminista do tipo do que<br />
aconteceu nas socieda<strong>de</strong>s industrializadas. Mas temos <strong>um</strong> quadro que permite propor agendas<br />
<strong>de</strong> luta que congreguem todas as necessida<strong>de</strong>s não satisfeitas em termos <strong>de</strong> cidadania. Neste<br />
campo temos, nomeadamente, a educação sexual, a transformação das relações <strong>de</strong> g<strong>é</strong>nero, a<br />
inovação nas formas <strong>de</strong> família, a abertura à diversida<strong>de</strong> sexual, os direitos e a saú<strong>de</strong><br />
reprodutivas. A própria esquerda e os sectores chamados progressistas ou mais liberais da nossa<br />
socieda<strong>de</strong>, aceitam mais facilmente agendas políticas relacionadas com a igualda<strong>de</strong> social e<br />
económica do que agendas relacionadas com a igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> g<strong>é</strong>nero ou sexual. Há que dizê-lo: o<br />
nosso ambiente político <strong>é</strong> conservador, mesmo nas áreas políticas on<strong>de</strong> se esperaria que não o<br />
fosse. Ou não <strong>é</strong> óbvio para toda a gente que o aborto não foi legalizado porque o PS não quis?<br />
Repensar o que foi o movimento pró-aborto; repensar o que foi o processo político que<br />
conduziu ao referendo; repensar o que foi a campanha do referendo e o resultado <strong>de</strong>ste<br />
significa várias coisas: em primeiro lugar, pensar sobre o quadro político da área que<br />
apoiou o “Sim”; segundo, pensar sobre a primazia dos partidos ou dos movimentos <strong>de</strong><br />
cidadania; terceiro, pensar sobre estrat<strong>é</strong>gia, em termos <strong>de</strong> “conciliação” ou<br />
“radicalização”; terceiro, pensar em termos <strong>de</strong> arg<strong>um</strong>entos e valores; quarto, pensar em<br />
termos <strong>de</strong> táctica <strong>de</strong> campanha. A meu ver, todas estas questões necessitam <strong>de</strong> alguns<br />
novos (ou velhos? É espantoso como tudo o que digo abaixo já foi dito nos anos... sessenta!)<br />
pontos <strong>de</strong> partida que po<strong>de</strong>m inverter – mesmo que só a m<strong>é</strong>dio prazo – a “lógica <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>rrota” do movimento pelo “Sim”:<br />
118