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Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

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Despe e siga<br />

(Secção “Ver, Ler e Ouvir: Uma Semana no Inferno”, “O In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte”, 31.01.97)<br />

Quando eu era miúdo havia os super-heróis. Agora há as super-mo<strong>de</strong>los. As mulheres<br />

conquistaram o Mundo ou pelo menos a passarela, a julgar pela final do concurso “Super Mo<strong>de</strong>l<br />

of the World”. Pois <strong>é</strong>, fui à FIL ver o <strong>de</strong>sfile. Quer dizer: só vi meta<strong>de</strong>, por que ao fim <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />

hora senti-me ludibriado. As super-mo<strong>de</strong>los não faziam proezas como os super-heróis, embora<br />

eu não duvi<strong>de</strong> que <strong>um</strong>a anorexia disciplinada seja <strong>um</strong> exercício dos diabos. Mas a razão do meu<br />

cansaço foi outra: <strong>é</strong> que aquilo afinal era a gravação <strong>de</strong> <strong>um</strong> programa <strong>de</strong> televisão e os pobres<br />

convidados eram os figurantes. Só que não o sabiam <strong>de</strong> antemão. A senhora da SIC tratou logo<br />

<strong>de</strong> nos avisar, pedindo-nos que batêssemos palmas ao seu sinal. E o espectáculo lá começou ou,<br />

melhor, lá foi recomeçando, à medida que Catarina Furtado se ia enganando nas <strong>de</strong>ixas.<br />

Para quê ser mauzinho? Foi <strong>um</strong>a óptima experiência cultural, no sentido antropológico da coisa.<br />

Fiquei a saber que as mulheres se querem magríssimas, com <strong>um</strong> toque adolescente-Lolita, e<br />

com pequenas protuberâncias mamárias entrevistas atrav<strong>é</strong>s d<strong>um</strong>a coisa chamada tule. Se<br />

estivesse com “jet lag” e menos “jet set” diria que aquilo era <strong>um</strong> daqueles concursos <strong>de</strong> beleza<br />

infantil que há na Am<strong>é</strong>rica. Mas <strong>um</strong> dos senhores do júri tratou <strong>de</strong> nos elucidar, quando<br />

entrevistado: o que importa <strong>é</strong> a personalida<strong>de</strong>, mais que o corpo. On<strong>de</strong> <strong>é</strong> que já tinha ouvido<br />

aquilo? Nas “misses”? Não po<strong>de</strong> ter sido: as “misses” <strong>é</strong> piroso, as “mo<strong>de</strong>ls” <strong>é</strong> moda.<br />

Apesar <strong>de</strong> o australiano atrás <strong>de</strong> mim ter dito a frase da noite “they should have paid us to be<br />

here” – , a noite pedófila (isto <strong>é</strong>, com jovens na FIL) foi muito educativa. Levou-me a pensar<br />

nas mulheres: como são representadas na nossa oferta cultural? O nobre propósito levou-me a<br />

visitar a exposição sobre vestidos <strong>de</strong> noiva no Museu do Traje. Não contava começar o dia com<br />

<strong>um</strong>a missa, mas o percurso começa na capela do Palácio do Monteiro-Mor, com a reconstituição<br />

do casamento <strong>de</strong> Dom Duarte e Isabel Her<strong>é</strong>dia. Contorçam-se ainda mais <strong>de</strong> re<strong>um</strong>ático, almas<br />

republicanas! E alegrem-se, produtores <strong>de</strong> “Tele-shopping”, pois o ví<strong>de</strong>o didáctico que ali<br />

passava <strong>de</strong>via ser o mesmo que se anuncia na TV nesta nossa monarquia virtual. Dom Duarte<br />

estava com ar <strong>de</strong>veras aflito, mas <strong>de</strong>via ser do manequim.<br />

Aliás, estes são <strong>um</strong> problema, pois fazem sempre pensar no “rigor mortis”; o museu <strong>de</strong>via<br />

contratar as super-mo<strong>de</strong>los, dando assim pleno sentido à palavra manequim. As mulheres<br />

sempre imitaram as mo<strong>de</strong>los das respectivas <strong>é</strong>pocas: coisa <strong>de</strong> gente com dinheiro, o vestido <strong>de</strong><br />

noiva foi-se <strong>de</strong>mocratizando, com as pequeno-burguesas brincando ora às rainhas, ora às <strong>de</strong>usas<br />

brancas e imaculadas. Se calhar <strong>é</strong> por isso que a exposição <strong>é</strong> em honra <strong>de</strong> Stº. António e o<br />

casamento real <strong>é</strong> o principal diaporama.<br />

O cantinho politicamente correcto do meu c<strong>é</strong>rebro avisa-me: estás a retratar as mulheres como<br />

mo<strong>de</strong>los ou esposas. Por isso fui a correr ver “O Clube das Divorciadas”, na esperança <strong>de</strong> que o<br />

outro lado do Atlântico trouxesse <strong>um</strong> pouco <strong>de</strong> feminismo à coisa. <strong>Bem</strong>, lá trazer trouxe. Só que<br />

trata-se <strong>de</strong> pós-pós-feminismo. Primeiro foram as manifestações <strong>de</strong> rua. Depois foi a reacção, o<br />

antifeminismo do chamado “backlash” – essa palavra que parece <strong>um</strong>a tara sado-masoquista.<br />

Agora <strong>é</strong> o regresso das mulheres que tomam conta das suas vidas sem terem <strong>de</strong> queimar os<br />

“soutiens” (problema que não se coloca às super-mo<strong>de</strong>los, está claro). As três personagens do<br />

filme foram abandonadas pelos maridos infantilói<strong>de</strong>s e encharcam-se em comprimidos, comida<br />

e álcool. Depois <strong>de</strong>ste ataque <strong>de</strong> bulimia, já não cabem nos vestidos <strong>de</strong> noiva.<br />

Um dia fartam-se. À medida que se vingam dos maridos com saudável malva<strong>de</strong>z, apercebem-se<br />

do egoísmo da coisa. Ao som alegre-militante <strong>de</strong> “Sisters are doing it for themselves”, transformam<br />

a sua re<strong>de</strong>nção n<strong>um</strong>a acção solidária e fundam <strong>um</strong> centro <strong>de</strong> dia para mulheres, à custa<br />

do dinheiro extorquido aos maridos. Feminismo “soft”: as três acabam o filme muito bem arr<strong>um</strong>adas,<br />

tipo mulher <strong>de</strong> sucesso, enquanto os maridos rastejam na lama e per<strong>de</strong>m a simpatia das<br />

respectivas amázias-candidatas-a-mo<strong>de</strong>lo ou menininhas-com-síndrome-<strong>de</strong>-noiva. O filme <strong>é</strong><br />

mesmo giro e i<strong>de</strong>al para a hora <strong>de</strong> almoço.<br />

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