Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
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Iznogoud<br />
(Webpage, 5.02.03)<br />
Não, não foi nas aulas <strong>de</strong> História que ouvi falar <strong>de</strong> Bagdad pela primeira vez, ou dos gran<strong>de</strong>s<br />
reinos da Mesopotâmia e S<strong>um</strong><strong>é</strong>ria que ocupavam aquelas paragens na Antiguida<strong>de</strong>. Bagdad<br />
surgiu-me na banda <strong>de</strong>senhada – mais exactamente nas páginas da revista Tintin. Goscinny (o<br />
mesmo <strong>de</strong> Asterix) e Tabary assinavam <strong>um</strong>a s<strong>é</strong>rie chamada Iznogoud. A acção <strong>de</strong>senrolava-se<br />
naquela cida<strong>de</strong> do m<strong>é</strong>dio-oriente e as duas personagens principais eram o Califa e o Grão-Vizir,<br />
chamado Iznogoud. O Califa era <strong>um</strong> jovem gordo, preguiçoso e ing<strong>é</strong>nuo; o Grão-Vizir era o<br />
astuto e perverso primeiro-ministro, que manipulava o po<strong>de</strong>r a seu bel-prazer – começando pela<br />
manipulação da moleza cong<strong>é</strong>nita do Califa. Des<strong>de</strong> então que procuro sempre os “Califas” e os<br />
“Grão-Vizires” em toda e qualquer situação on<strong>de</strong> o jogo do po<strong>de</strong>r institucional se <strong>de</strong>senrole:<br />
n<strong>um</strong>a empresa, n<strong>um</strong>a faculda<strong>de</strong>, no governo <strong>de</strong> <strong>um</strong> país.<br />
Tivemos já <strong>um</strong>a boa dose <strong>de</strong> Califas. Mário Soares, embora astuto politicamente, tinha essa<br />
característica bonacheirona, fazendo a política mais n<strong>um</strong>a conversa entremeada <strong>de</strong> “pás” e<br />
asneiras suaves do que em negociações recheadas <strong>de</strong> cinismo e hipocrisia. Jorge Sampaio<br />
tamb<strong>é</strong>m <strong>é</strong> <strong>um</strong> Califa, pelo menos no espanto infantil das suas expressões, na tendência para se<br />
emocionar e lacrimejar. Eanes foi a excepção e talvez por isso não tenha <strong>de</strong>ixado sauda<strong>de</strong>s.<br />
Mas o cerne da questão <strong>é</strong> este: há sempre algu<strong>é</strong>m que exerce o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> modo maquiav<strong>é</strong>lico,<br />
que manipula, que calcula, que acha que os fins justificam os meios. Em situações extremas, a<br />
sua job <strong>de</strong>scription po<strong>de</strong> incluir a tomada <strong>de</strong> posições que prejudiquem a própria coisa que eles<br />
representam – <strong>um</strong> país, por exemplo – se acharem que os benefícios ulteriores o justificam ou se<br />
lhes for conveniente em termos <strong>de</strong> jogo político imediato.<br />
Ora, assistimos nos últimos dias a <strong>um</strong>a coisa espantosa. O nosso grão-vizir, perdão, o nosso<br />
primeiro-ministro, assinou <strong>um</strong> doc<strong>um</strong>ento com mais sete grão-vizires europeus, apoiando a<br />
política <strong>de</strong> guerra <strong>de</strong> Bush. Os motivos são claros (isto <strong>é</strong>, não o são, mas nós percebemo-los):<br />
em primeiro lugar, garantir margem <strong>de</strong> manobra no jogo dos países mais pequenos contra o eixo<br />
Franco-Alemão; em segundo lugar, promover internamente a imagem <strong>de</strong> força autoritária<br />
guerreira que confirme que estamos mesmo n<strong>um</strong> regime <strong>de</strong> direita.<br />
No fim das histórias, Iznogoud per<strong>de</strong> sempre. De alg<strong>um</strong>a forma a justiça triunfa e os <strong>de</strong>sígnios<br />
maquiav<strong>é</strong>licos da Segunda Figura (em Portugal, por acaso, at<strong>é</strong> <strong>é</strong> terceira) são revelados. O<br />
maquiavelismo ten<strong>de</strong> sempre para a trapalhada e algures no percurso falha qualquer coisa.<br />
Felizmente não precisamos <strong>de</strong> esperar pelo fim da história. Durão Barroso já cometeu dois<br />
graves atentados: o primeiro, contra a <strong>de</strong>mocracia representativa, ao ter tomado <strong>um</strong>a <strong>de</strong>cisão<br />
daquela gravida<strong>de</strong> sem consultar a Assembleia da República. O segundo, contra a União<br />
Europeia, ajudando a criar <strong>um</strong>a brecha e enfraquecendo-a face aos EUA.<br />
Se quis<strong>é</strong>ssemos ser mais papistas que o papa, não seria legítimo dizer que, <strong>um</strong>a vez que<br />
Portugal <strong>é</strong> membro da UE – e esta já <strong>é</strong> mais do que mera aliança económica (<strong>de</strong> certo modo <strong>é</strong><br />
<strong>um</strong> país maior que o país) – Durão Barroso acaba <strong>de</strong> “trair a Pátria”? Para conseguir os seus<br />
intentos, Iznogoud passava a vida a fazer isso mesmo... E o Califa ficava calado.<br />
Mas <strong>um</strong> Iznogoud nunca funciona sozinho. Precisa <strong>de</strong> distribuir benesses, <strong>é</strong> certo. O seu maior<br />
apoio vem daqueles que se apaixonam pelo pragmatismo e pela força, pelo “realismo” da<br />
política. Em Portugal, parecem ser proporcionalmente mais as ocasiões <strong>de</strong> apoio a Bush do que<br />
na própria Am<strong>é</strong>rica. Não por parte da população, mas por parte <strong>de</strong> mil e <strong>um</strong> Iznogouds em<br />
posição <strong>de</strong> influenciar toda a gente. N<strong>um</strong> mesmo dia leio artigos em jornais e revistas<br />
americanas contra Bush e a guerra, incluindo <strong>um</strong> abaixo assinado ocupando <strong>um</strong>a página inteira<br />
da New York Review of Books (não, não <strong>é</strong> <strong>um</strong> pasquim <strong>de</strong> esquerda universitária...) on<strong>de</strong><br />
constam nomes sonantes da Am<strong>é</strong>rica; e leio <strong>um</strong> Público cujo director incita à guerra, ou vejo o<br />
mais-bushiano-que-Bush Luís Delgado nomeado para director da agência noticiosa nacional....<br />
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