Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
MVA – É <strong>um</strong> jogo armadilhado. Mas <strong>um</strong>a das primeiras preocupações <strong>de</strong> <strong>um</strong> espírito científico<br />
preocupado em não reproduzir a i<strong>de</strong>ologia seria perceber se afirmações como essa, <strong>de</strong> haver<br />
<strong>um</strong>a gran<strong>de</strong> incidência <strong>de</strong> c<strong>é</strong>rebros ju<strong>de</strong>us na ciência oci<strong>de</strong>ntal ou <strong>um</strong>a gran<strong>de</strong> incidência <strong>de</strong><br />
atletas negros no <strong>de</strong>sporto, são verda<strong>de</strong>iras ou não. Primeiro, do ponto <strong>de</strong> vista absoluto, se<br />
calhar não <strong>é</strong> verda<strong>de</strong>, e se calhar não <strong>é</strong> verda<strong>de</strong> do ponto <strong>de</strong> vista relativo porque <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> dos<br />
crit<strong>é</strong>rios usados... E se for verda<strong>de</strong> não me preocupava porque tinha ainda duas hipóteses <strong>de</strong><br />
explicação: a sociológica e a gen<strong>é</strong>tica. E agora chegamos a <strong>um</strong> ponto fulcral – por que <strong>é</strong> que<br />
continua a existir no senso com<strong>um</strong> a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> <strong>um</strong> espectro racial cujas fronteiras são completamente<br />
difusas, mas que ainda permite às pessoas fazerem a distinção entre os pretos, os<br />
brancos, etc? Em primeiro lugar, porque o nosso c<strong>é</strong>rebro, as nossas estruturas cognitivas,<br />
funcionam por processos <strong>de</strong> classificação e <strong>de</strong> oposição.<br />
NM – Nomear <strong>é</strong> sempre <strong>um</strong> acto <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. A questão <strong>é</strong> que vê <strong>um</strong>a diferença e tem <strong>de</strong> lhe dar<br />
<strong>um</strong> nome. Entre si e <strong>um</strong> bosquímano [habitante da África Austral] vê <strong>um</strong>a diferença abissal: ele<br />
tem <strong>um</strong> metro e trinta, ná<strong>de</strong>gas hipertrofiadas e fala por estalidos.<br />
MVA – Sabe porque <strong>é</strong> que vejo essa diferença? Porque <strong>é</strong> esse crit<strong>é</strong>rio que estou a usar. Não há<br />
observação pura: não há <strong>um</strong> momento fundacional em que percebo que há <strong>um</strong>a diferença<br />
categorial, <strong>de</strong> “raça”, entre si e <strong>um</strong> bosquímano. Quando os comparo já <strong>é</strong> com <strong>um</strong> protocolo <strong>de</strong><br />
comparação baseado na i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> raça. Porque se a comparar a si comigo as diferenças são<br />
igualmente abissais.<br />
NM – Certo, vai à procura da diferença. Mas <strong>é</strong> como com as bruxas: não existem, mas que as<br />
há, há.<br />
MVA – Sim, a diferença existe. Foi reproduzida ao longo <strong>de</strong> s<strong>é</strong>culos por socieda<strong>de</strong>s<br />
colonialistas que criaram impossibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> encontro entreas pessoas <strong>de</strong> “diferentes raças”,<br />
dificultaram ou proibiram o casamento entre elas e a reprodução. Então tem <strong>um</strong>a pescadinha <strong>de</strong><br />
rabo na boca: <strong>um</strong>a situação <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> estrutural e social que <strong>é</strong> explicada atrav<strong>é</strong>s da raça, e<br />
a reprodução da própria “raça” atrav<strong>é</strong>s <strong>de</strong>ssas mesmas <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s. Como se estiv<strong>é</strong>ssemos a<br />
garantir raças <strong>de</strong> cães n<strong>um</strong> canil. O que quer dizer que as raças são produzidas e apuradas<br />
atrav<strong>é</strong>s do estabelecimento <strong>de</strong> fronteiras sociais entre os representantes do que se percepciona<br />
como “raças diferentes”.<br />
NM – Se fiz<strong>é</strong>ssemos como queriam fazer os nazis, isto <strong>é</strong>, só <strong>de</strong>ixássemos os louros <strong>de</strong> olhos<br />
azuis reproduzir-se com os louros <strong>de</strong> olhos azuis, os japoneses com os japoneses, os bosquímanos<br />
com os bosquímanos, obteríamos “raças”?<br />
MVA – Não sou a pessoa mais indicada para respon<strong>de</strong>r a isso. Porque há aí crit<strong>é</strong>rios <strong>de</strong> gen<strong>é</strong>tica<br />
que <strong>de</strong>sconheço. Mas creio que nos h<strong>um</strong>anos, por causa da <strong>de</strong>mografia – somos muitos e há<br />
muito tempo que somos muitos – os crit<strong>é</strong>rios fenotípicos que servem para a <strong>de</strong>finição da “raça”<br />
não são isoláveis.<br />
NM – Digamos que a “pool” já está <strong>de</strong>masiado misturada.<br />
MVA – Sim. Mas <strong>é</strong> importante dizer <strong>um</strong>a coisa: a raça <strong>é</strong> <strong>um</strong> produto do racismo. O racismo não<br />
<strong>é</strong> <strong>um</strong> produto da raça. Não há <strong>um</strong>a pr<strong>é</strong>via existência da raça como conceito que <strong>de</strong>pois cria o<br />
racismo. Não <strong>é</strong> como o etnocentrismo, que <strong>é</strong> resultado da existência <strong>de</strong> unida<strong>de</strong>s populacionais<br />
mais ou menos isoladas. Dizer que o racismo <strong>é</strong> o resultado da existência <strong>de</strong> raças <strong>é</strong> estar a<br />
sancioná-lo.<br />
NM – Curiosamente, quando tentou reescrever o artigo 13º da Constituição, aquele que faz o<br />
elenco das causas pelas quais as pessoas não po<strong>de</strong>m ser discriminadas, não conseguiu retirar o<br />
termo “raça”.<br />
MVA – Porque quando se sai da ciência e se passa para a política, há <strong>um</strong> ponto em que se tem<br />
<strong>de</strong> começar a medir os interesses que estão em jogo. E os interesses nem sempre se<br />
compa<strong>de</strong>cem com a busca da clareza <strong>de</strong> espírito, mas com a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> justiça e com aquilo<br />
que n<strong>um</strong> dado momento <strong>é</strong> mais útil. E como a Constituição <strong>é</strong> <strong>um</strong>a coisa provisória, aceito que lá<br />
esteja raça. Preferia que estivesse entre aspas, para fazer pedagogia e reforçar a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que se<br />
244