Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
– Exacto. Po<strong>de</strong> ser narcísico mas tamb<strong>é</strong>m <strong>é</strong> a maneira <strong>de</strong> me obrigar a fazer a coisa a seguir. Há<br />
<strong>um</strong>a pulsão produtiva que sempre construí com <strong>um</strong> gran<strong>de</strong> amigo, que <strong>é</strong> o Rui Zink, e que <strong>é</strong><br />
assim tamb<strong>é</strong>m. Há anos e anos que falamos <strong>de</strong>sta com<strong>um</strong> mania <strong>de</strong> fazer, <strong>de</strong>sta pressa.<br />
Tínhamos discussões muito giras na adolescência sobre as pessoas que escolhiam entre o ter e o<br />
ser, a dicotomia clássica dos moralistas. Ficávamos embasbacados porque achávamos que era<br />
<strong>um</strong>a falsa opção. Havia <strong>um</strong>a terceira, que era o fazer. Estou a dizer que o meu maior <strong>de</strong>feito <strong>é</strong><br />
simultaneamente <strong>um</strong>a qualida<strong>de</strong>.<br />
– Há outras coisas em si <strong>de</strong> que goste?<br />
– Há coisas que me aconteceram ou não me aconteceram e que estou feliz por terem acontecido<br />
ou não terem acontecido. Sentir que não tenho, à parte pequeníssimas coisas, pesos na<br />
consciência em relação a culpas <strong>de</strong> qualquer merda que tenha feito a algu<strong>é</strong>m. É bom porque já<br />
percebi que não <strong>é</strong> muito com<strong>um</strong>.<br />
– A culpa ou o fazer merda?<br />
– Pois. Mas tenho a consciência tranquila. Como toda a gente, presto mais atenção a medir os<br />
<strong>de</strong>feitos e a tentar controlá-los do que propriamente a procurar qualida<strong>de</strong>s ou a dizer que gosto<br />
muito <strong>de</strong> mim.<br />
Secção Os Nossos Neurónios. Raça <strong>de</strong> Palavra. Notícias Magazine, 21.01.00. Por Fernanda<br />
Câncio<br />
Notícias Magazine – Como <strong>é</strong> que se <strong>de</strong>screve?<br />
<strong>Miguel</strong> <strong>Vale</strong> <strong>de</strong> <strong>Almeida</strong> – A resposta a isso <strong>é</strong> armadilhada porque a minha profissão contamina<br />
a minha i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>: <strong>de</strong>screvo-me sempre situacionalmente. Quando estava a trabalhar no Brasil,<br />
<strong>de</strong>screvia-me como branco, porque era tamb<strong>é</strong>m essa a <strong>de</strong>scrição que era feita <strong>de</strong> mim; quando<br />
vivi nos EUA, pelo meu nome punham-me na categoria dos latinos, hispânicos, classificação só<br />
utilizada nos EUA, e que me colocava na categoria dos “não brancos”. Se fizer a m<strong>é</strong>dia <strong>de</strong>ssas<br />
situações <strong>de</strong>screvo-me como mediterrânico com ascendência judaica, sei que a tenho. Assim,<br />
sou muito português: há qualquer coisa <strong>de</strong> ju<strong>de</strong>u, qualquer coisa <strong>de</strong> berbere ou <strong>de</strong> árabe, com<br />
certeza, se calhar qualquer coisa <strong>de</strong> africano, embora não conheça nenh<strong>um</strong>a história nesse<br />
sentido...<br />
NM – Nada como viajar para perceber a relativida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssas classificações... Na China, por<br />
exemplo, <strong>um</strong>a portuguesa morena po<strong>de</strong> passar por indiana: aconteceu comigo. Já teve <strong>de</strong>, por<br />
exemplo, n<strong>um</strong> doc<strong>um</strong>ento – como <strong>um</strong> pedido <strong>de</strong> visto – atribuir-se <strong>um</strong>a raça?<br />
MVA – Havia <strong>um</strong>a altura em que os pap<strong>é</strong>is para o pedido <strong>de</strong> visto para os EUA perguntavam<br />
isso, creio que agora já não. Mas sempre me recusei a respon<strong>de</strong>r: para começar, acho que não<br />
tenho raça nenh<strong>um</strong>a.<br />
N M – A não ser a h<strong>um</strong>ana, como dizia não sei quem. Mas o conceito existe.<br />
MVA – Não <strong>é</strong> <strong>um</strong> conceito. Não tem, pelo menos na minha disciplina, as características <strong>de</strong> <strong>um</strong>.<br />
Não <strong>é</strong> operativo, não serve para <strong>de</strong>screver nada <strong>de</strong> geral e abstracto que não tenha <strong>de</strong> ser situado<br />
em concreto e <strong>é</strong> <strong>um</strong>a palavra contaminada pela sua utilização política. E o que faço <strong>é</strong> abordar o<br />
termo como “<strong>é</strong>mico”.<br />
NM – Émico?<br />
MVA – Em Antropologia distinguimos entre as coisas <strong>é</strong>micas e as <strong>é</strong>ticas. As <strong>é</strong>ticas têm a ver<br />
com a utilização <strong>de</strong> conceitos aplicáveis universalmente, que o observador científico usa para<br />
<strong>de</strong>screver e comparar realida<strong>de</strong>s e chegar a alg<strong>um</strong>a conclusão. As <strong>é</strong>micas são as utilizadas pelas<br />
pessoas e socieda<strong>de</strong>s que estudamos: conceitos <strong>de</strong> senso com<strong>um</strong>, que não passam pelo crivo<br />
científico.<br />
241