Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
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maioria parlamentar <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> – perante <strong>um</strong> extraordinário consenso que ainda hoje espanta não ter<br />
sido questionado – aceitar o “não” expresso por <strong>um</strong>a ínfima minoria. Agora reparem: o<br />
parlamento não quis <strong>de</strong>cidir e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>cidiu com base n<strong>um</strong> referendo abortado; o referendo,<br />
por sua vez, ficou <strong>de</strong>sprestigiado logo na sua estreia. Talvez não seja por acaso que tenha sido a<br />
partir <strong>de</strong> então que começaram a ac<strong>um</strong>ular-se os sinais da “crise do regime”, do Estado e do seu<br />
“apodrecimento”.<br />
Pensavam alg<strong>um</strong>as pessoas que ainda julgam que o bom senso impera apesar <strong>de</strong> tudo, que se<br />
teria muito cuidado na convocação <strong>de</strong> outro referendo. Qual quê. Dias <strong>de</strong>pois já sabíamos que<br />
teríamos <strong>de</strong> nos confrontar com a extraordinária questão da regionalização. Uma vez mais<br />
estamos perante <strong>um</strong> absurdo. O absurdo <strong>é</strong> este: este referendo não <strong>é</strong> sobre a regionalização. A<br />
questão a que (acho eu) temos que respon<strong>de</strong>r não <strong>é</strong> se a regionalização <strong>é</strong> boa ou má. Porquê?<br />
Porque não <strong>é</strong> isso que nos estão a perguntar.<br />
Repare-se nos arg<strong>um</strong>entos do “sim” e do “não”. Uns falam sobre a representativida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>mocrática dos cargos <strong>de</strong> administração pública, da <strong>de</strong>sburocratização, da racionalida<strong>de</strong> das<br />
<strong>de</strong>cisões e seu nível <strong>de</strong> aplicação, do exemplo europeu, <strong>de</strong> mais <strong>de</strong>senvolvimento. Outros falam<br />
<strong>de</strong> compadrio, mais burocracia, maior estrangulamento dos municípios, dos exemplos europeus<br />
<strong>de</strong> crescente <strong>de</strong>sagregação regional, <strong>de</strong> que o <strong>de</strong>senvolvimento se po<strong>de</strong> fazer a partir do Estado<br />
central e das CCRs. Etc.<br />
Ningu<strong>é</strong>m nos está a perguntar a pergunta que caberia ser colocada: “Concorda com o princípio<br />
da regionalização administrativa do país?” Não. Uma vez mais, algo que está na constituição vai<br />
a referendo. É o po<strong>de</strong>r legislativo a <strong>de</strong>mitir-se das suas responsabilida<strong>de</strong>s. Mas o que ele passa<br />
para a <strong>de</strong>mocracia referendária <strong>é</strong> a especificação <strong>de</strong> <strong>um</strong> mapa regional já feito, justamente o<br />
processo que, das duas <strong>um</strong>a: ou mais precisaria <strong>de</strong> referendos locais para se chegar a <strong>um</strong> mapa<br />
consensual; ou mais precisaria <strong>de</strong> ser gen<strong>é</strong>rico e <strong>de</strong>cidido a partir <strong>de</strong> cima <strong>de</strong> modo a não<br />
alimentar os regionalismos paroquiais – por exemplo o mapa das actuais CCRs. Teria sido bem<br />
mais simples manter as CCRs e as subdivisões em NUTs, evitando assim a “etnicização” a que<br />
este processo vai conduzir, e abolir os distritos e a figura dos governadores civis.<br />
O que está a ser feito <strong>é</strong> <strong>um</strong>a esp<strong>é</strong>cie <strong>de</strong> sondagem pr<strong>é</strong>via às próximas eleições legislativas. Basta<br />
ver o alinhamento partidário pelo sim e pelo não, as contradições entre o que se pensava ontem<br />
e hoje e a tibieza com que o próprio proponente... propõe. Como <strong>é</strong> que os cidadãos, perante isto,<br />
po<strong>de</strong>m sentir que estão a participar no que são supostos estarem a participar?<br />
Por isso este referendo irrita. Somos chamados a participar na segunda volta do que já antes foi<br />
a <strong>de</strong>monstração da mais completa imaturida<strong>de</strong> e irresponsabilida<strong>de</strong> na gestão <strong>de</strong> <strong>um</strong> bem<br />
precioso e raro que <strong>é</strong> a <strong>de</strong>mocracia. Eu que sempre votei, pon<strong>de</strong>ro agora não votar, votar branco<br />
ou nulo, ou votar “não” só para emperrar o processo. Quando se chega a (in)<strong>de</strong>cisões <strong>de</strong> voto<br />
<strong>de</strong>ste tipo – “negativas” – <strong>é</strong> porque já se esvaziou a clareza <strong>de</strong> posições e a própria noção do que<br />
está em causa. É triste não po<strong>de</strong>r votar com a consciência tranquila <strong>de</strong> estar a escolher entre <strong>um</strong><br />
arg<strong>um</strong>ento e outro em torno <strong>de</strong> algo <strong>de</strong> concreto.É triste mas não sou eu, não somos nós, quem<br />
tem culpa.<br />
O resultado vai ser a gran<strong>de</strong> confusão. A partir do propósito paternalista <strong>de</strong> dar voz às regiões e<br />
equilibrar interesses divergentes e “assimetrias”, a confusão resultante das respostas e das nãorespostas<br />
às duas cretiníssimas perguntas do referendo vai ser marcada pelo surgimento <strong>de</strong><br />
projectos <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> que at<strong>é</strong> aqui eram só (e saudavelmente) i<strong>de</strong>ntificações em processo.<br />
Antropólogos <strong>de</strong>ste país, vem aí muito que fazer! Ôba, ôba, valha-nos isso....<br />
Coisas <strong>de</strong> Rapazes<br />
(“O In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte”, 26.03.99)<br />
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