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Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

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alienada dos mecanismos da justiça. Está completamente para lá <strong>de</strong>la. Para lá <strong>de</strong> Marraqueche.<br />

O que isto nos diz sobre o Estado e a justiça portuguesas <strong>é</strong> tanto ou mais preocupante do que o<br />

que nos diz sobre o estado <strong>de</strong> ruptura das relações sociais.<br />

Por fim, algo <strong>de</strong> que não se ouviu falar como <strong>um</strong> fenómeno: as greves <strong>de</strong> fome. No espaço <strong>de</strong><br />

alguns meses, fui-me apercebendo <strong>de</strong> que cada vez mais pessoas estavam a recorrer à greve <strong>de</strong><br />

fome para reivindicar a solução <strong>de</strong> problemas. O que <strong>é</strong> assustador neste “surto” <strong>é</strong> o seguinte:<br />

não se tratou <strong>de</strong> greves feitas por grupos ou organizações; e não se tratou <strong>de</strong> greves por<br />

“valores” político-i<strong>de</strong>ológicos (os bascos não são para aqui chamados). Tratou-se,<br />

aparentemente, <strong>de</strong> greves pessoais para resolver problemas pessoais. Aparentemente: porque, do<br />

invisual que acampa frente ao Parlamento para obter <strong>um</strong> emprego digno, à professora que se<br />

instala em frente ao Minist<strong>é</strong>rio da Educação por causa d<strong>um</strong>a injustiça nas habilitações, o que<br />

temos são casos sociais que abrangem muito mais pessoas. A <strong>de</strong>sconfiança instalou-se em<br />

relação às instituições que <strong>de</strong>vem resolver os problemas sociais. E instalou-se tamb<strong>é</strong>m em<br />

relação à capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> as pessoas se organizarem em grupos <strong>de</strong> pressão. Se a isto juntarmos o<br />

simbolismo <strong>de</strong> a greve <strong>de</strong> fome ser <strong>um</strong>a martirização do próprio corpo, vemos o estado <strong>de</strong><br />

atomização a que as coisas chegaram.<br />

Missão Canibal.<br />

(Público, 29.09.96)<br />

Finalmente ganhei coragem e fui ver o filme “Missão Impossível”. Não se trata <strong>de</strong> coragem para<br />

ultrapassar qualquer elitismo cin<strong>é</strong>filo. Cost<strong>um</strong>o <strong>de</strong>liciar-me com lixo cinematográfico por puro<br />

<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> alienação. Para o conseguir, aturo tudo: as pipocas, que cheiram mal e guincham nas<br />

bocas invisíveis dos outros espectadores; a publicida<strong>de</strong> antes dos filmes, sem que haja <strong>um</strong><br />

<strong>de</strong>sconto no preço do bilhete como compensação; e o vol<strong>um</strong>e cada vez mais alto com que<br />

emitem os filmes, <strong>de</strong>certo por causa dos ouvidos arrebentados pela poluição sonora.<br />

A coragem era necessária, sim, para me confrontar com a versão Hollywood-anos 90 d<strong>um</strong>a s<strong>é</strong>rie<br />

televisiva que fez parte da minha infância e adolescência. Tinha medo <strong>de</strong> regressar à escola e<br />

achá-la pequena <strong>de</strong>mais. Nunca imaginei que a viesse a achar mal-cheirosa e traiçoeira. Odiei o<br />

filme porque ele me traíu usando os mais reles truques – e não terei sido o único a senti-lo. Mas<br />

<strong>de</strong>veremos ficar pela lamentação, como aqueles “soixante-huitards” que me inspiravam tanta<br />

pena quando era adolescente, sempre queixando-se da <strong>de</strong>cadência da juventu<strong>de</strong> actual? Não.<br />

Po<strong>de</strong>mos tirar alg<strong>um</strong>as ilações: a versão actual <strong>de</strong> “Missão Impossível” dá-nos alguns sinais dos<br />

tempos, se anotarmos as diferenças entre a s<strong>é</strong>rie e o filme.<br />

A s<strong>é</strong>rie não tinha <strong>um</strong> personagem central, <strong>um</strong> herói. O grupo da Missão Impossível era isso<br />

mesmo, <strong>um</strong> grupo. Cada qual tinha a sua especialida<strong>de</strong> e ningu<strong>é</strong>m se armava em esperto nem<br />

em melhor que os outros. No filme, não só há <strong>um</strong> personagem central, como ele <strong>é</strong> praticamente<br />

o único personagem. Nos cinco primeiros minutos, a quase totalida<strong>de</strong> da equipa <strong>é</strong> morta, ou<br />

<strong>de</strong>saparece na clan<strong>de</strong>stinida<strong>de</strong>. Tudo isto porque o personagem central <strong>é</strong> representado por Tom<br />

Cruise. Nas gran<strong>de</strong>s produções já não há personagens, há actores. Ou nem isso: há ídolos, na<br />

verda<strong>de</strong>ira acepção da palavra.<br />

Na s<strong>é</strong>rie original não havia traições entre os membros do grupo. Nem sequer havia conflitos ou<br />

altercações. É claro que isso era <strong>de</strong> <strong>um</strong> irrealismo a toda a prova. Eles eram figuras <strong>de</strong> cartão,<br />

sem profundida<strong>de</strong> psicológica. Era disso mesmo que nós, os putos da <strong>é</strong>poca, gostávamos da<br />

s<strong>é</strong>rie: os cinco magníficos resolvendo os casos. Na versão actual, o ponto fulcral da narrativa <strong>é</strong> a<br />

traição. Pior: o traidor <strong>é</strong> o chefe, o traído e herói <strong>é</strong> o pirralho do Cruise, que nem sequer<br />

correspon<strong>de</strong> a nenh<strong>um</strong> dos membros da equipa da s<strong>é</strong>rie antiga.<br />

Na s<strong>é</strong>rie original, as coisas passavam-se em países imaginários e estereotipados, como nos<br />

“comics”: as repúblicas das bananas centro-americanas e os regimes totalitários do Leste. Era<br />

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