Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
<strong>de</strong>leitam com a memória do que sofreram com isso – que as crianças memorizem as linhas <strong>de</strong><br />
comboio. Mesmo as <strong>de</strong>sactivadas, suponho.<br />
Já parece mania: quando as coisas correm mal, procura-se no passado a solução. A atracção que<br />
aqueles produtos exercem <strong>de</strong>ve-se a <strong>um</strong> facto muito simples: são estúpidos. Porque são<br />
simplistas, são redutores, e fecham pistas em vez <strong>de</strong> as abrirem. Leia-se com atenção <strong>um</strong><br />
daqueles Livros <strong>de</strong> Leitura e ficar-se-á abismado com as i<strong>de</strong>ias que ali correm sobre a família, a<br />
hierarquia social, o papel das mulheres, a história <strong>de</strong> Portugal, a religião. Livros daqueles “já”<br />
só <strong>de</strong>ve haver (saídos fresquinhos dos respectivos minist<strong>é</strong>rios da educação) na Croácia e na<br />
S<strong>é</strong>rvia. Porque tamb<strong>é</strong>m aí o simplismo <strong>é</strong> a cartilha maternal das tiranias locais para reforçarem a<br />
intemporalida<strong>de</strong> das Nações e das suas “purezas <strong>é</strong>tnicas”.<br />
É compreensível – nesta pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> (peço <strong>de</strong>sculpa, tem que ser...) – que a est<strong>é</strong>tica<br />
daqueles produtos seja <strong>um</strong> dos seus principais atractivos. Têm o seu quê <strong>de</strong> “naïf”, as cores são<br />
tão pastel como os textos, e o mundo que apresentam não <strong>é</strong> complicado. Infantilizam-nos. Os<br />
mapas, por exemplo: Portugal <strong>é</strong> <strong>um</strong>a linda mancha colorida <strong>de</strong> ver<strong>de</strong>s, rosas, amarelos e azuis<br />
pálidos (supostamente habitado por caras pálidas, o que conv<strong>é</strong>m). A Espanha <strong>é</strong> <strong>um</strong>a mancha<br />
branca à margem, terra <strong>de</strong> ningu<strong>é</strong>m, sítio on<strong>de</strong> acaba o que interessa. As manchas coloridas<br />
invocam ainda o <strong>de</strong>bate actual sobre a regionalização. Elas indicam as “Províncias”, <strong>um</strong>a das<br />
invenções que mais profundamente foram absorvidas pelos Portugueses.<br />
Quanto à cartilha <strong>de</strong> João <strong>de</strong> Deus, o meu exemplar já serviu para acen<strong>de</strong>r a lareira. Por <strong>um</strong>a<br />
razão mais perversa: para celebrar a minha <strong>de</strong>cisão irrevogável <strong>de</strong> nunca mais comprar o<br />
“Expresso”. Isto <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o fatídico Sábado em que, do editorial at<strong>é</strong> à composição das fotografias<br />
dos candidatos e às legendas, o respeitável semanário apelava ao voto em Cavaco Silva. Se há<br />
relação entre o apelo ao voto n<strong>um</strong> homem com as qualida<strong>de</strong>s dos que figuravam n<strong>um</strong> daqueles<br />
Livro <strong>de</strong> leitura, e a edição da phantástica cartilha, não sei. Mas que há coincidência com o ar<br />
dos tempos que correm, lá isso há.<br />
Façam-se “t-shirts” com a capa do Livro <strong>de</strong> Leitura da (<strong>de</strong>) Terceira Classe e seus meninos da<br />
Mocida<strong>de</strong> Portuguesa correndo para (contra?) o leitor. De preferência agitando ban<strong>de</strong>irinhas do<br />
PSD ou similar, para apimentar a coisa. Isso sim: tinha piada, recriava o passado, dava-nos<br />
ânimo para o fu.turo como gente inventiva. Mas por favor: não dêem aqueles livros a ler às<br />
criancinhas. E, sobretudo, não mostrem o mapa com as “Províncias” aos <strong>de</strong>putados que vão<br />
tratar da regionalização.<br />
Meia dúzia <strong>de</strong> princípios<br />
(Público, 18.02.96)<br />
O leitor já alg<strong>um</strong>a vez leu a Constituição da República Portuguesa? É provável que não o tenha<br />
feito. Não <strong>é</strong> caso para espantar: são quase 300 artigos, cobrindo quase tudo na organização <strong>de</strong><br />
<strong>um</strong> país. Mesmo aquilo que po<strong>de</strong>ria estar escrito noutro tipo <strong>de</strong> legislação.<br />
Sabemos que a nossa tradição <strong>é</strong> bem diferente da Anglo-Saxónica, e que <strong>é</strong> fantasioso termos<br />
algo <strong>de</strong> semelhante à Magna Carta, ou à Constituição Americana, cujo original manuscrito<br />
milhões <strong>de</strong> Americanos vão “visitar” regularmente, como símbolo importante que <strong>de</strong>ve ser.<br />
Sabemos tamb<strong>é</strong>m que a juventu<strong>de</strong> do regime <strong>de</strong>mocrático tem feito com que a Constituição <strong>de</strong><br />
1976 tenha vindo a ser revista <strong>de</strong> cada vez que as circunstâncias mudam e se vão <strong>de</strong>sa<strong>de</strong>quando<br />
do clima <strong>de</strong> então. Isto transmite insegurança e <strong>de</strong>snorteio. Como se faltasse <strong>um</strong> contrato básico.<br />
Passamos a vida a dizer coisas como “estamos n<strong>um</strong> Estado <strong>de</strong> direito” ou “somos todos iguais<br />
perante a lei”. De facto, estas coisas estão escritas na Constituição, no meio <strong>de</strong> <strong>um</strong> ror <strong>de</strong><br />
pormenores. Mas são as que interessam. Princípios “<strong>é</strong>ticos” <strong>de</strong> <strong>um</strong> contrato político para a<br />
cidadania.<br />
12