13.04.2013 Views

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

A solução <strong>é</strong>, pois, complicada. Mas precisamos <strong>de</strong> inventar, pessoal e colectivamente, <strong>um</strong>a<br />

alternativa a esta nova alienação que <strong>é</strong> o constante adiamento do presente. Aceitam-se<br />

sugestões, agora tamb<strong>é</strong>m em correio electrónico!: <strong>Miguel</strong>.<strong>Almeida</strong>@iscte.pt<br />

Um casal como os outros<br />

(Público, 24.03.96)<br />

Não nos conhecíamos. Quer dizer: não no sentido antigo da expressão. Nunca nos havíamos<br />

encontrado face a face, nem sequer falado ao telefone. Eles conheciam-me <strong>de</strong> aparições públicas<br />

e da foto que encabeça as crónicas; eu conhecia-os <strong>de</strong> reportagens da TV e artigos nos jornais. É<br />

assim o mundo <strong>de</strong> hoje: mais isolados e mais distantes e, no entanto, mais aptos a conhecermos<br />

outros que, <strong>de</strong> outro modo, nunca cruzariam as nossas vidas.<br />

O João e o Luís: são estes os seus nomes. Tornaram-se, a seu modo, personagens do domínio<br />

público. Quando os dois se apaixonaram, João vinha <strong>de</strong> <strong>um</strong>a relação anterior com <strong>um</strong>a mulher,<br />

com quem tivera <strong>um</strong>a filha. Na disputa judicial em torno da tutela e dos direitos <strong>de</strong> paternida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> João, este acabaria por ver consagrado o seu direito a criar a filha, por o tribunal o ter achado<br />

mais competente para tal do que a ex-mulher. Os pormenores já foram amplamente divulgados<br />

na imprensa. Acontece, por<strong>é</strong>m, que <strong>um</strong> tribunal superior a que a ex-mulher <strong>de</strong> João recorreu<br />

acabou por inverter a or<strong>de</strong>m das coisas. A criança regressou à mãe. Des<strong>de</strong> então anda a monte, e<br />

o João e o Luís não sabem on<strong>de</strong> ou como está a criança.<br />

Da leitura dos acórdãos e da conversa com o casal, surgem três arg<strong>um</strong>entos perturbadores que<br />

foram usados contra o casal pelo lado da mãe da criança: a homossexualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> João como<br />

perniciosa para a filha; o facto <strong>de</strong> João e Luís serem <strong>um</strong> casal; e as acusações <strong>de</strong><br />

comportamentos in<strong>de</strong>corosos do Luís para com a criança. Aquilo que tinha sido <strong>um</strong> triunfo na<br />

<strong>de</strong>mocracia portuguesa – o reconhecimento <strong>de</strong> que <strong>um</strong> casal do mesmo sexo po<strong>de</strong> ser mais apto<br />

para criar <strong>um</strong>a criança do que <strong>um</strong>a mãe – foi <strong>de</strong>struído por <strong>um</strong>a instância judicial superior on<strong>de</strong><br />

reina o preconceito mais absoluto. Como em todos os casos <strong>de</strong> preconceito, os arg<strong>um</strong>entos são<br />

sempre contraditórios entre si e com a realida<strong>de</strong>. “Mãe <strong>é</strong> mãe”, mesmo que seja negligente.<br />

“Homossexual <strong>é</strong> perverso”, ainda que bom pai.<br />

No meio <strong>de</strong>sta trama, <strong>é</strong> evi<strong>de</strong>nte para qualquer <strong>um</strong> que quem mais sofre, ou po<strong>de</strong>rá vir a sofrer,<br />

<strong>é</strong> a criança. Note-se: a criança não sofrerá por ter <strong>um</strong> pai homossexual e por este ter <strong>um</strong><br />

companheiro. A criança sofrerá porque anda a monte, não vê o pai, ouve coisas horríveis sobre<br />

ele e o seu parceiro. E, sobretudo, isto: a justiça portuguesa não permite a esta criança que<br />

cresça como pessoa livre, confrontada com a diversida<strong>de</strong>, fazedora das suas próprias escolhas,<br />

opiniões e afectos. A justiça portuguesa con<strong>de</strong>nou <strong>um</strong>a criança ao <strong>de</strong>gredo social e afectivo.<br />

João e Luís vão contando os pormenores da história, em tudo semelhantes aos que têm saído nos<br />

jornais mais cuidadosos. Mantêm a calma e a compostura. Só assim se sobrevive à exposição, à<br />

h<strong>um</strong>ilhação e à perda afectiva. Mantêm-nas, tamb<strong>é</strong>m, porque não se sentem culpados <strong>de</strong> nada e<br />

têm a consciência tranquila. É no que dá o amor e a paternida<strong>de</strong> ass<strong>um</strong>idas. Mas não ficaram <strong>de</strong><br />

braços cruzados. Por <strong>um</strong> lado, vão recorrer ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (<strong>um</strong>a<br />

vez mais, Portugal “não chega”). Por outro, perceberam que a sua situação <strong>é</strong> <strong>um</strong>a situação<br />

política – e circula agora, por iniciativa sua, <strong>um</strong>a petição à Assembleia da República pedindo a<br />

igualda<strong>de</strong> dos direitos dos homens e mulheres homossexuais.<br />

Afinal, o João e o Luís não são <strong>um</strong> casal como os outros. Porque perceberam que o seu caso só<br />

se resolve na esfera pública e política. A perda da filha acordou neles a cidadania. Perceberam<br />

que o seu caso po<strong>de</strong> ser o ponto <strong>de</strong> partida para <strong>um</strong>a mudança qualitativa na nossa socieda<strong>de</strong>.<br />

Recusaram-se a pactuar com a hipocrisia que diz que toda a gente po<strong>de</strong> fazer o que quiser <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

que não mostre. Ou a que estigmatiza a conjugalida<strong>de</strong> e o exercício da paternida<strong>de</strong> por<br />

homossexuais, con<strong>de</strong>nando-os àquilo <strong>de</strong> que, <strong>de</strong>pois, são acusados – o egoísmo, a infantilida<strong>de</strong><br />

18

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!