Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
O símbolo das ban<strong>de</strong>iras do arco-íris na Avenida da Liberda<strong>de</strong> sintetiza a questão. Começou por<br />
ser o emblema da proposta da coligação arco-íris americana, para <strong>um</strong>a plataforma do<br />
movimento negro, com o das mulheres, os gays, os ecologistas etc. Cedo foi apropriado quer<br />
pelo movimento <strong>de</strong> luta contra a sida quer, sobretudo, pelo movimento homossexual. Em<br />
tempos <strong>de</strong> “globalização”, <strong>é</strong> <strong>um</strong> emblema fácil <strong>de</strong> apropriar em Portugal, por <strong>um</strong>a protocomunida<strong>de</strong><br />
gay que sabe ter <strong>de</strong> ancorar-se em laços transnacionais. E que sabe tamb<strong>é</strong>m,<br />
“localizar” as suas estrat<strong>é</strong>gias. Disso po<strong>de</strong>rá ser indício o “arraial gay” previsto para o dia<br />
internacional gay felizmente coinci<strong>de</strong>nte com e inserido nas Festas <strong>de</strong> Lisboa. Por muito<br />
segmentar que seja este exemplo, <strong>é</strong>-o <strong>de</strong> alg<strong>um</strong>a esperança <strong>de</strong> que em Portugal se dêem alguns<br />
pontap<strong>é</strong>s na bola. Em direcção ao golo e contra a “romenização”.<br />
Os pequeno-portugueses<br />
(“Visão”, 12.06.97)<br />
Em vez do velho “pequeno-burguês” criado pelo preconceito elitista com o recurso da<br />
linguagem sociológica, proponho que o que temos agora <strong>é</strong> o “pequeno-português”: aflito,<br />
medroso, vigiado pelos outros, fetichista do po<strong>de</strong>r e da letra da lei. Quando se <strong>de</strong>para com a<br />
mudança social vê o mundo a preto e branco: ou o regresso a <strong>um</strong>a hipot<strong>é</strong>tica “or<strong>de</strong>m”<br />
tradicional, ou a queda no caos. Sem visl<strong>um</strong>brar <strong>um</strong>a terceira via que recuse ao mesmo tempo o<br />
tradicionalismo e o porreirismo.<br />
Tudo isto tem sido evi<strong>de</strong>nte nas atitu<strong>de</strong>s contra os ciganos. Não digo “o problema dos ciganos”,<br />
pois a construção do “problema” <strong>é</strong> já <strong>de</strong> si sintoma do pequeno-portuguesismo. Em todos os<br />
casos, trata-se <strong>de</strong> <strong>um</strong> pânico suburbano: as massas resultantes da fuga dos campos vêem-se<br />
agora em territórios com fronteiras mal-<strong>de</strong>finidas, n<strong>um</strong>a ascensão social frágil. Ter os<br />
miseráveis e os “outcasts” por perto <strong>é</strong> <strong>um</strong>a ameaça à nova i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. Quanto ao racismo, ele<br />
não <strong>é</strong> <strong>um</strong>a emoção inerente às pessoas, mas <strong>um</strong>a forma <strong>de</strong> dar nome à coisa, criando diferenças<br />
<strong>de</strong> esp<strong>é</strong>cie no momento em que se re<strong>de</strong>finem diferenças <strong>de</strong> grau. Não se trata <strong>de</strong> <strong>um</strong> problema<br />
da “pequena burguesia”: os ricos parecem estar imunes porque à partida estão isentos da<br />
possibilida<strong>de</strong> geográfica <strong>de</strong> contactarem com os “outcasts”. O anti-ciganismo pequenoportuguês<br />
– esta recusa e incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r os processos <strong>de</strong> mudança – tem como<br />
efeito paradoxal a homenagem a <strong>um</strong> governador civil por ter feito aquilo que… se espera <strong>de</strong>le.<br />
Tamb<strong>é</strong>m no infame caso dos “Donos da Bola”, o senhor Pôncio <strong>de</strong>sautorizava a senhora Paula<br />
por ser prostituta e brasileira. No caso dos <strong>de</strong>ntistas brasileiros (outro “problema” construído) a<br />
Associação profissional portuguesa não consegue disfarçar a base preconceituosa das suas<br />
atitu<strong>de</strong>s. Invoca a saú<strong>de</strong> pública, quando nunca fez cavalo <strong>de</strong> batalha da falta <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntistas no<br />
país, dos preços cobrados, da crónica cárie nacional. Pu<strong>de</strong>ra: a posição da associação <strong>é</strong><br />
corporativista, e o corporativismo (ao contrário do associativismo ou do sindicalismo) <strong>é</strong> a<br />
estrat<strong>é</strong>gia pequeno-portuguesa das elites t<strong>é</strong>cnicas. E o brasileirismo dos outros <strong>de</strong>ntistas vem<br />
mesmo a calhar, nestes tempos <strong>de</strong> extraterrestres: “eles vivem, eles estão entre nós”. Eles<br />
“brocam” entre nós.<br />
Delimitar a geografia social dos bairros, <strong>de</strong>limitar quem po<strong>de</strong> ou não pertencer a <strong>um</strong>a elite<br />
profissional: dois processos com origens <strong>de</strong> classe diferentes mas ambos recorrendo à invenção<br />
<strong>de</strong> <strong>um</strong> “outro” ameaçador. Mas o pequeno-portuguesismo tem outra vertente <strong>de</strong> aflição. No caso<br />
das universida<strong>de</strong>s, o Estado garante o privil<strong>é</strong>gio <strong>de</strong> uns poucos impedindo as contratações <strong>de</strong><br />
docentes. Ao mesmo tempo transforma as universida<strong>de</strong>s em instituições <strong>de</strong> ensino <strong>de</strong> massas.<br />
Como o financiamento <strong>é</strong> o do orçamento <strong>de</strong> Estado, tão pouco se contratam t<strong>é</strong>cnicos. O<br />
resultado <strong>é</strong> que os docentes gastam a cabeça e o tempo com duas questões para as quais não<br />
foram preparados e que não faziam parte da sua motivação inicial para a ciência: a “pedagogia”<br />
e a “administração”. A gestão <strong>de</strong> massas <strong>de</strong> estudantes, o negócio das avaliações e da pedagogia<br />
vão <strong>de</strong> mãos dadas com a infantilização da juventu<strong>de</strong>, tornando-se a universida<strong>de</strong> n<strong>um</strong> enorme<br />
59