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Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

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sítios com a monografia na mochila não os reconhecia: a vida social <strong>é</strong> complexa e difícil <strong>de</strong><br />

encaixar nas prateleiras <strong>de</strong> <strong>um</strong> livro. Em nenh<strong>um</strong>a socieda<strong>de</strong> as coisas funcionam segundo os<br />

princípios que os seus membros julgam ser os <strong>de</strong>terminantes. Nem sempre a política se joga nas<br />

instituições políticas, nem a economia nas económicas. Nem sempre as motivações e os valores<br />

que <strong>de</strong> facto fazem as coisas mexer são aqueles que a i<strong>de</strong>ologia ou a cultura dizem ser.<br />

Pus-me a imaginar o que aconteceria se Portugal fosse <strong>um</strong>a socieda<strong>de</strong> remota, <strong>de</strong>sconhecida e<br />

visitada pela primeira vez por <strong>um</strong> <strong>de</strong>sses antigos antropólogos <strong>de</strong> capacete colonial na cabeça.<br />

Tenho a certeza que o seu relato enunciaria todos os princípios que julgamos regerem a nossa<br />

socieda<strong>de</strong>. A saber: as leis, as instituições <strong>de</strong>mocráticas representativas, o trabalho, os contratos<br />

das mais diversas esp<strong>é</strong>cies, a famigerada moral judaico-cristã e por aí fora. E <strong>de</strong>pois pus-me a<br />

imaginar o que sentiria <strong>um</strong> observador mais arguto que, com essa <strong>de</strong>scrição na mão, visitasse o<br />

país e tivesse o jeito <strong>de</strong> perceber o que o faz mesmo mexer. Que bela surpresa o esperaria! <strong>Este</strong><br />

observador – mais perspicaz, menos optimista e mais irónico, mas sem dúvida mais lúcido –<br />

teria <strong>de</strong> chegar a <strong>um</strong>a mão cheia <strong>de</strong> conclusões perturbadoras. Imagino os apontamentos à flor<br />

da pele rabiscados no seu ca<strong>de</strong>rno:<br />

“O país parece ser governado por <strong>um</strong>a <strong>é</strong>lite que domina os códigos do que aqui se chama ‘o<br />

Direito’. Essa <strong>é</strong>lite <strong>é</strong> composta por vários níveis <strong>de</strong> especialização: há os ‘advogados’, os<br />

‘procuradores’, os ‘juízes’ e os ‘juristas’. A maior parte das vezes não estão envolvidos na<br />

administração directa das coisas do ‘Direito’, mas sim da ‘Política’, da ‘Comunicação Social’<br />

ou das ‘Empresas’. Como em todas as <strong>é</strong>lites, têm <strong>um</strong> certo espírito <strong>de</strong> corpo mas quando<br />

começam a ser muitos e a representar interesses divergentes, rebelam-se uns contra os outros.<br />

Um bom estudo <strong>de</strong> caso para explicitar esta i<strong>de</strong>ia será o chamado ‘caso Leonor Beleza’.<br />

Esta classe dirigente não <strong>de</strong>t<strong>é</strong>m necessariamente o po<strong>de</strong>r económico. Não se trata apenas do<br />

facto <strong>de</strong> a ‘Economia’ ser dirigida por interesses <strong>de</strong> para<strong>de</strong>iro <strong>de</strong>sconhecido, quase sempre<br />

al<strong>é</strong>m-fronteiras. Esse <strong>é</strong> outro domínio. O que acontece <strong>é</strong> que nem o ‘Estado’ consegue controlar<br />

a economia <strong>de</strong> modo a garantir <strong>um</strong>a distribuição equitativa dos recursos, nem o que eles<br />

chamam a ‘Economia <strong>de</strong> Mercado’ consegue <strong>de</strong> facto e <strong>de</strong> forma transparente, gerir a<br />

‘Economia’. As coisas parecem estar na mão <strong>de</strong> <strong>um</strong>as socieda<strong>de</strong>s secretas a que <strong>é</strong> difícil ter<br />

acesso, as quais penetram no po<strong>de</strong>r político (chegando a ameaçar o lugar das velhas <strong>é</strong>lites), no<br />

po<strong>de</strong>r económico (subvertendo toda e qualquer vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> planeamento) e ainda no po<strong>de</strong>r da<br />

informação, sobretudo televisiva (relatando não-acontecimentos e ocultando acontecimentos).<br />

Dois bons estudos <strong>de</strong> caso sobre este assunto: o sector empresarial que aqui chamam<br />

‘Construção Civil’ – <strong>um</strong>a apelação irónica, que parece ter a ver com ‘Elevamento Moral’ ou<br />

‘Educação Cívica’ – e o que dá pelo nome <strong>de</strong> ‘Futebol Nacional’. Ao contrário do que o nome<br />

indica, não se trata <strong>de</strong> <strong>um</strong>a activida<strong>de</strong> lúdica ou ritual, mas sim <strong>de</strong> <strong>um</strong> esquema <strong>de</strong> economia<br />

subterrânea com interesses estabelecidos no po<strong>de</strong>r político, económico e <strong>de</strong> informação”.<br />

Infelizmente, este cientista social <strong>é</strong> produto da imaginação. É pena: <strong>um</strong>a boa monografia sobre<br />

Portugal teria necessariamente <strong>de</strong> abordar os mundos semi-secretos do Direito e da Televisão.<br />

Uma muito boa monografia sobre Portugal teria <strong>de</strong> ser baseada n<strong>um</strong> trabalho <strong>de</strong> campo corajoso<br />

no seio <strong>de</strong> mundos secretos, como, por exemplo, o da Construção Civil e o do Futebol. Quem<br />

tiver coragem para o fazer ponha o <strong>de</strong>do no ar. Estamos precisados.<br />

República Franciscana<br />

(Público, 24.11.96)<br />

Há semanas atrás escrevi <strong>um</strong>a crónica em que dizia que para mim – ex-resi<strong>de</strong>nte na Am<strong>é</strong>rica –<br />

tinha acabado a relação <strong>de</strong> atracção e retracção com o Norte do Novo Mundo. Parece que me<br />

enganei. Quer dizer: eu estava a falar do sítio errado, a costa leste. Ou estava a falar, por assim<br />

dizer, na escala errada – <strong>de</strong> <strong>um</strong> país, <strong>de</strong> <strong>um</strong>a generalida<strong>de</strong>, e não <strong>de</strong> locais concretos. Neste<br />

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