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Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

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nível cultural e da comunicação, parecer que caminhamos para <strong>um</strong>a cultura global, <strong>um</strong>a esp<strong>é</strong>cie<br />

<strong>de</strong> irmã g<strong>é</strong>mea da economia global. Quer isto dizer que caminhamos para a homogeneida<strong>de</strong><br />

cultural? O antropólogo Ulf Hannerz res<strong>um</strong>e bem a situação no seu livro “Cultural<br />

Complexity”. Para ele, a autonomia e as fronteiras das culturas são hoje <strong>um</strong>a questão <strong>de</strong> grau; a<br />

distribuição <strong>de</strong> traços culturais no mundo <strong>é</strong> afectada pelas relações assim<strong>é</strong>tricas entre centro e<br />

periferia <strong>de</strong> duas maneiras: moldando as condições materiais e <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, e atrav<strong>é</strong>s da injecção<br />

directa <strong>de</strong> formas e significados exteriores. Acontece que essa injecção não encontra, à chegada,<br />

<strong>um</strong>a tábua rasa, antes entra em interacção com significados pr<strong>é</strong>-existentes. Mais: os fluxos<br />

culturais transnacionais são diversificados e o mercado, o Estado, as formas <strong>de</strong> vida e os<br />

movimentos têm formas diferentes <strong>de</strong> os organizar. Se a isto acrescentarmos que nem todas as<br />

culturas são locais ou marcadas por <strong>um</strong> território, não <strong>é</strong> nada evi<strong>de</strong>nte que o resultado final<br />

<strong>de</strong>stes processos seja a homogeneização global da cultura.<br />

Se a universalida<strong>de</strong> do símbolo da Coca-Cola representa o mercado global integrado, as<br />

“recuperações <strong>de</strong> tradições” a que assistimos em muitos locais representam <strong>um</strong> contraponto.<br />

Mas se estas velhas-novas tradições po<strong>de</strong>m ser <strong>de</strong>negridas como “invenções” sem contexto,<br />

tamb<strong>é</strong>m o hábito <strong>de</strong> beber Coca-Cola po<strong>de</strong> simbolizar <strong>um</strong>a reivindicação <strong>de</strong> autonomia por<br />

parte <strong>de</strong> certos grupos e pessoas em contextos muito tradicionalistas. Seja como for, não vamos<br />

a lado nenh<strong>um</strong> (no conhecimento, na libertação e no po<strong>de</strong>r sobre as nossas vidas) se falarmos<br />

em abstracto da globalização quer como <strong>um</strong>a fatalida<strong>de</strong> anti-nação e anti-etnia, quer como <strong>um</strong>a<br />

utopia internacionalista.<br />

A al<strong>de</strong>ia on<strong>de</strong> vivi está situada n<strong>um</strong> país semi-perif<strong>é</strong>rico (não <strong>é</strong> nem os E.U.A. nem os<br />

Camarões), on<strong>de</strong> coexistem traços <strong>de</strong> pr<strong>é</strong>-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> e pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>,<br />

amalgamados no <strong>de</strong>correr da mudança acelerada das últimas d<strong>é</strong>cadas. Portugal <strong>é</strong> <strong>um</strong> excelente<br />

terreno para se fazer o trabalho <strong>de</strong>tectivesco <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir as linhas com que se cose a ligação<br />

entre <strong>um</strong> homem que extrai o mármore e os aviões da força a<strong>é</strong>rea americana no Iraque. Ou entre<br />

<strong>um</strong>a jovem que bebe a sua Coca-Cola na esplanada d<strong>um</strong>a vila alentejana – sonhando que <strong>é</strong> mais<br />

livre do que o foi a sua mãe – enquanto escreve <strong>um</strong> trabalho para a escola sobre o a al<strong>de</strong>ia<br />

global. Ou, como ela diria: a “aldêa globali”.<br />

Nós Outros<br />

(Público, 05.05.96)<br />

A antropóloga Verena Stolcke escrevia, n<strong>um</strong> artigo publicado o ano passado, o seguinte<br />

parágrafo: “O fundamentalismo cultural contemporâneo <strong>é</strong> baseado em duas premissas: a <strong>de</strong> que<br />

as diferentes culturas são incomensuráveis e a <strong>de</strong> que, porque os seres h<strong>um</strong>anos são<br />

inerentemente etnocêntricos, as relações entre as culturas são “por natureza” hostis. A xenofobia<br />

está para o fundamentalismo cultural como o conceito bio-natural <strong>de</strong> “raça” está para o<br />

racismo”.<br />

Vamos por partes. A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que as culturas são incomensuráveis <strong>é</strong> <strong>um</strong> produto do relativismo<br />

cultural. <strong>Este</strong> foi adoptado como <strong>um</strong>a postura moral e política para combater os conceitos<br />

racialistas que giravam em torno da eugenia (lembremo-nos <strong>de</strong> Hitler). O relativismo cultural<br />

tornou-se, sobretudo no pós-guerra, no b-a-ba da antropologia e cedo passou para a socieda<strong>de</strong><br />

em geral: não haveria culturas superiores ou inferiores, mas apenas diferentes. O exagero <strong>de</strong>sta<br />

atitu<strong>de</strong> levou à i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que as culturas não se tocavam a não ser por imposição. Tendo sido, no<br />

início, <strong>um</strong>a i<strong>de</strong>ia h<strong>um</strong>anista, cedo foi apropriada quer pelo moralismo <strong>de</strong> esquerda, quer pelos<br />

racismos oficiais: o apartheid mais sofisticado <strong>de</strong>fendia-se com a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que estava a preservar<br />

as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s culturais.<br />

Quanto aos seres h<strong>um</strong>anos serem etnocêntricos, isto tem que ver com a constatação <strong>de</strong> que em<br />

todos os povos estudados pelos antropólogos havia atitu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> auto-elogio, e <strong>de</strong> menosprezo<br />

pelos Outros. Tratava-se <strong>de</strong> <strong>um</strong>a constatação, mas que se aplicava em especial aos povos ditos<br />

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