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Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

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proteccionismo <strong>de</strong> países <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> dimensão e projecção têm como consequência paradoxal a<br />

criação <strong>de</strong> provincianismo. Outra alternativa <strong>é</strong> mais com<strong>um</strong> no Brasil: trata-se <strong>de</strong> transliterar<br />

para português palavras estrangeiras, sem as traduzir. Dá efeitos curiosos, como “dossiê” (mas <strong>é</strong><br />

só <strong>um</strong>a questão <strong>de</strong> ortografia). Mas tamb<strong>é</strong>m dá efeitos paradoxais: <strong>é</strong> o caso <strong>de</strong> “mídia” para<br />

dizer “media”, como se a palavra fosse inglesa e não latina – logo património do português.<br />

Uma das vantagens <strong>de</strong> se viver em Portugal <strong>é</strong> tratar-se <strong>de</strong> <strong>um</strong> país semi-perif<strong>é</strong>rico, que não está<br />

nem no centro dos acontecimentos e da produção científica e cultural, nem tão pouco na<br />

periferia absoluta. Não somos nem os Estados Unidos nem o Burkina-Fasso. Por isso somos<br />

obrigados a apren<strong>de</strong>r línguas, a ler “estrangeiro” (tamb<strong>é</strong>m por razões <strong>de</strong> escala não se traduz<br />

muito em Portugal), e a não esperar que os outros falem português. Somos obrigados – não se<br />

trata <strong>de</strong> <strong>um</strong>a questão <strong>de</strong> g<strong>é</strong>nio nacional. Mas esta circunstância leva-nos por vezes a<br />

menosprezarmos a atenção à nossa língua, ao contrário, por exemplo, dos escandinavos que,<br />

sendo fluentes em inglês, cultivam as suas línguas nacionais. Nós vivemos na balda: sem <strong>um</strong>a<br />

aca<strong>de</strong>mia da língua activa, sem <strong>um</strong> dicionário fundamental, sem actualizações <strong>de</strong> vocabulário,<br />

sem <strong>um</strong> pouco <strong>de</strong> vigilância sobre as barbarida<strong>de</strong>s (e o exemplo acima referido <strong>é</strong> <strong>um</strong>a versão<br />

muito soft. Perdão, suave).<br />

Sem chauvinismo e sem facilitismo, e sabendo que a língua <strong>é</strong> <strong>um</strong>a coisa viva e que não se faz<br />

por <strong>de</strong>creto (etcetera, o arg<strong>um</strong>ento <strong>é</strong> conhecido) não nos custava nada sugerir e inventar<br />

alternativas: o resultado só po<strong>de</strong>ria ser o enriquecimento – dois pássaros <strong>de</strong> <strong>um</strong>a pedrada. Oops,<br />

outra vez <strong>um</strong> anglicismo: <strong>de</strong>via ser dois coelhos <strong>de</strong> <strong>um</strong>a cajadada. Porque <strong>é</strong> que “browser” não<br />

há-<strong>de</strong> ser folheador, “buffer” amortecedor, “live” ao vivo, “on-line” em linha e por aí fora? Só à<br />

primeira <strong>é</strong> que soa estranho. Caso contrário po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>cidir entrar na crioulização completa e ir<br />

inventando <strong>um</strong> dialecto híbrido que se actualize ainda mais <strong>de</strong>pressa do que as línguas normais.<br />

E ao qual se po<strong>de</strong>riam juntar todas as modificações que se vão introduzindo no português<br />

falado, acabando assim tamb<strong>é</strong>m com o problema ortográfico. O texto acima citado daria<br />

qualquer coisa como isto: “O VDOAoVivo tá available para várias plataformas i <strong>é</strong> compatível<br />

com os main folheadores”. Não era mais estranho do que o dito texto. Pensando bem, at<strong>é</strong> tinha a<br />

sua piada: já que não há regras, reinvente-se tudo e entremos no s<strong>é</strong>culo 21 com <strong>um</strong>a língua online<br />

aberta a todos os downloads (já agora: <strong>de</strong>scargas).<br />

Beijinhos<br />

(Público, 20.10.96)<br />

Fui convidado, via Internet, para <strong>um</strong> “kiss-in”. De repente pensei que tínhamos voltado aos anos<br />

sessenta. Mas <strong>de</strong>pois reconsi<strong>de</strong>rei: estamos bem no fim do s<strong>é</strong>culo, recuperando coisas <strong>de</strong> <strong>é</strong>pocas<br />

anteriores naquilo que elas têm <strong>de</strong> melhor. Eu conto a história. Consta que abriu <strong>um</strong>a discoteca<br />

nova na zona do porto <strong>de</strong> Lisboa. Consta ainda que a dita discoteca se proclama como discoteca<br />

gay. Acontece que muitos homossexuais que lá foram não se sentiram nada bem: sentiram-se<br />

como bibelôs ali chamados para entreterem e darem “clima” ao ambiente, composto sobretudo<br />

por heterossexuais (não me perguntem como se sabe tal coisa. Parece que se sabe e pronto). Um<br />

pouco como aquelas noites <strong>de</strong> “t-shirts” molhadas para atraír mais clientes sem ter <strong>de</strong> pagar a<br />

artistas para animarem a festa. Os clubes gay não abrem proclamando-se como tal: há batuques<br />

na floresta que transmitem a mensagem e <strong>um</strong> sítio gay <strong>é</strong> <strong>um</strong> sítio gay <strong>é</strong> <strong>um</strong> sítio gay e sabe-se<br />

logo.<br />

O “kiss-in”: tratou-se <strong>de</strong> conseguir que o maior número possível <strong>de</strong> casais ou amigos<br />

homossexuais fossem n<strong>um</strong>a certa noite àquela discoteca e começassem a beijar-se<br />

ostensivamente, ou a andar <strong>de</strong> mãos dadas ou a dançar abraçados, como todos os casais <strong>de</strong><br />

namorados. E ver o que acontecia. Não sei o que se passou, mas a estrat<strong>é</strong>gia <strong>é</strong> boa. Contra quem<br />

se aproveita <strong>de</strong> grupos marginalizados como os gays para atraír clientelas se<strong>de</strong>ntas <strong>de</strong><br />

“originalida<strong>de</strong>”, “transgressão” e “clima” noctívago. A i<strong>de</strong>ia era confrontar a clientela e os<br />

donos com a “realida<strong>de</strong> real” dos gays, chocando-os. Trata-se <strong>de</strong> terrorismo cultural no seu<br />

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