13.04.2013 Views

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

A retórica sobre o <strong>de</strong>sporto e as suas virtu<strong>de</strong>s nunca foi tão paradoxal como hoje. É banal dizer<br />

que vemos mais <strong>de</strong>sporto do que praticamos. Assim como dizer que os corpos dos atletas<br />

profissionais são <strong>de</strong>masiado i<strong>de</strong>ais, inatingíveis pelo com<strong>um</strong> dos mortais. Já não <strong>é</strong> tão banal<br />

assim reconhecer que algo <strong>de</strong> errado se passa quando vemos aquelas crianças fazendo coisas<br />

que requerem <strong>um</strong> treino e <strong>um</strong>a disciplina que tocam as raias do anormal. O que se passa <strong>é</strong> o<br />

seguinte: feitos para a televisão, os Jogos Olímpicos são <strong>um</strong> espectáculo virtual em que se<br />

transmitem imagens i<strong>de</strong>ais sobre as capacida<strong>de</strong>s do corpo h<strong>um</strong>ano. Tal como na publicida<strong>de</strong>, em<br />

que a sofisticação vi<strong>de</strong>ográfica já transmite a fantasia absoluta, os corpos das ginastas já não são<br />

h<strong>um</strong>anos. O seu carácter trans-h<strong>um</strong>ano <strong>é</strong> por nós aceite porque elas são figuras que nos chegam<br />

por via hertziana. E todos os quatro anos esperamos pela surpresa <strong>de</strong> ver <strong>um</strong>a ginasta que seja<br />

ainda mais aborto.<br />

É certo que noutras modalida<strong>de</strong>s não vemos isto. Vemos corpos normais e atingíveis, apenas<br />

mais trabalhados. Na própria ginástica masculina, não estamos (<strong>de</strong> modo alg<strong>um</strong>...) perante<br />

abortos. A pergunta lógica que se segue <strong>é</strong> a seguinte: porque têm as ginastas <strong>de</strong> ser assim? E a<br />

resposta só po<strong>de</strong> ser <strong>um</strong>a, porque <strong>é</strong> a que se pren<strong>de</strong> com a única coisa que as diferencia dos<br />

ginastas: porque são mulheres. O i<strong>de</strong>al est<strong>é</strong>tico que se preten<strong>de</strong> transmitir na ginástica feminina<br />

<strong>é</strong> <strong>um</strong> i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> leveza, ligeireza, graciosida<strong>de</strong>. Em s<strong>um</strong>a: floreados, “coisas <strong>de</strong> mulheres”. Os<br />

mais tecnicistas dirão que só com aqueles corpos se consegue fazer aqueles movimentos. Então<br />

a crítica <strong>de</strong>ve ser àqueles movimentos, ou seja: para que queremos nós aquela est<strong>é</strong>tica? Ou:<br />

porque tem aquela est<strong>é</strong>tica que ser conseguida nos movimentos do corpo e especificamente no<br />

corpo feminino? Não há dúvida: quando se trata <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ais, o corpo <strong>é</strong> que paga.<br />

Nada mais emblemático, aliás, do que o que aconteceu há dias com <strong>um</strong>a ginasta americana. A<br />

<strong>de</strong>sgraçada tinha que salvar a pontuação da equipa americana. Concentrou-se loucamente e<br />

executou os movimentos na perfeição. Quando assentou os p<strong>é</strong>s no chão <strong>de</strong>pois das piruetas<br />

a<strong>é</strong>reas, algo no seu corpo se partiu (isto <strong>é</strong> mais objectivo do que dizer “fracturou não sei o quê”).<br />

Na entrega das medalhas, foi levada ao colo pelo seu treinador at<strong>é</strong> ao podi<strong>um</strong>. O senhor,<br />

provavelmente <strong>de</strong> estatura e constituição “normais”, transportava <strong>um</strong>a criaturinha mirrada que<br />

só me fez pensar n<strong>um</strong> alienígena simpático e sensível <strong>de</strong> <strong>um</strong> filme do Spielberg. O trabalho, o<br />

sacrifício e, por fim, a mutilação daquele corpo (daquela pessoa) serviu para escrever <strong>um</strong>a<br />

pequena história tipicamente americana: ela transformou-se n<strong>um</strong>a heroína que salvou os EUA.<br />

De facto, <strong>é</strong> nas coisas mais óbvias que por vezes está o segredo. Os Jogos Olímpicos são <strong>um</strong>a<br />

competição entre países. Al<strong>é</strong>m dos corpos e seus movimentos, as ban<strong>de</strong>iras e os hinos são o<br />

material audio-visual do espectáculo olímpico. Isto <strong>é</strong> normalmente explicado pela retórica da<br />

paz universal – as Olimpíadas como <strong>um</strong>a lição moral dada ao espírito beligerante entre as<br />

nações. No entanto, sendo o corpo algo <strong>de</strong> tão individual que se confun<strong>de</strong> com a pessoa, não<br />

seria legítimo esperar que as Olimpíadas fossem disputadas por indivíduos, sem que importasse<br />

o país <strong>de</strong> origem? A resposta <strong>é</strong> assutadoramente simples: não. Porque, do mesmo modo que as<br />

guerras servem os interesses económicos sob a capa das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s nacionais, assim as<br />

Olimpíadas servem os mesmos interesses sob a capa da paz. Por isso Atlanta – <strong>um</strong>a cida<strong>de</strong><br />

horrível e <strong>de</strong> clima cruel -, capital da Coca-Cola e do Center for Disease Control (!), conseguiu<br />

os Jogos, logo na altura em que os Estados Unidos precisam afirmar-se no meio da nova<br />

<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m mundial.<br />

A melhor maneira <strong>de</strong> conseguir estes propósitos <strong>é</strong> levar ao colo, para o podi<strong>um</strong>, como n<strong>um</strong><br />

sacrifício, <strong>um</strong>a criatura <strong>de</strong> estufa em que nenh<strong>um</strong> <strong>de</strong> nós se reconhece. Sempre <strong>de</strong>sconfiei que<br />

algo <strong>de</strong> monstruoso se escondia por trás da Fada Sininho.<br />

Sub-esp<strong>é</strong>cie: pedófilo.<br />

(Público, 08.09.96)<br />

38

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!