Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
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dizer o que <strong>é</strong> a família (<strong>é</strong> assim como fazer <strong>um</strong>a lei <strong>de</strong> bases sobre a felicida<strong>de</strong> ou sobre o bom<br />
gosto). Mas pouco ou nada aconteceu, aparte os esforços <strong>de</strong> educação sexual feitos por ONGs<br />
ou grupos <strong>de</strong> pessoas mais ou menos voluntariosas. Entretanto, como <strong>de</strong>monstram os<br />
acontecimentos da Maia, as mulheres continuam a abortar nas condições que se sabe, ao mesmo<br />
tempo que todos os dias surge nos jornais o famoso anúncio em amarelo vivo que indica o<br />
contacto da clínica <strong>de</strong> Badajoz a que as pessoas com mais meios po<strong>de</strong>m recorrer.<br />
Obcecados com talibãs e burkas, os media portugueses – e, infelizmente, quase todos os<br />
políticos e os próprios portugueses (ah!, e sobretudo as portuguesas) – pouco se importam com<br />
este julgamento. Preferem continuar, com razão ou sem ela, a secular tradição <strong>de</strong> diabolizar os<br />
muçulmanos. Descobriram <strong>um</strong>a at<strong>é</strong> então <strong>de</strong>sconhecida compaixão com a sorte (ou a falta <strong>de</strong>la)<br />
feminina. E anseiam pelo dia em que as afegãs <strong>de</strong>itarão fora as suas burkas e sentirão algo <strong>de</strong><br />
aproximado à maravilhosa sensação <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> e cidadania <strong>de</strong> que usufruem as oci<strong>de</strong>ntais –<br />
entre as quais, claro, se encontram as portuguesas. O que não lhes ocorre <strong>é</strong> que, no s<strong>é</strong>culo XXI,<br />
n<strong>um</strong> Estado laico do Oci<strong>de</strong>nte, membro da União Europeia, o facto <strong>de</strong> várias mulheres serem<br />
julgadas pelo crime <strong>de</strong> aborto constitui <strong>um</strong>a terrível metáfora da burka.<br />
Se fosse mulher, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo procuraria organizar grupos <strong>de</strong> protesto e faria <strong>de</strong>ste caso causa<br />
para <strong>um</strong>a cruzada. Uma cruzada <strong>de</strong> ataque ao terrorismo fundamentalista católico, ao sexismo e<br />
à manipulação i<strong>de</strong>ológica e <strong>de</strong>magógica do conceito <strong>de</strong> vida. Mas iria mais longe: n<strong>um</strong> acto <strong>de</strong><br />
performance criativa, começaria a usar burka. Dos p<strong>é</strong>s à cabeça. Tapando os olhos e tudo.<br />
Talvez assim, tornadas visivelmente invisíveis, as mulheres e a sua situação se tornassem<br />
terrivelmente visíveis.<br />
Sem título<br />
(Webpage, 29.11.01)<br />
Ciclicamente, Portugal confronta-se com a sua pequenez e com a falta <strong>de</strong> verticalida<strong>de</strong> da sua<br />
classe política. Desta feita, a visita do Dalai Lama lançou mais <strong>um</strong> pouco da dita cuja (bem sei:<br />
solução h<strong>um</strong>orística <strong>de</strong>masiado fácil...), dias <strong>de</strong>pois das infelicida<strong>de</strong>s da promulgação da LPM e<br />
<strong>de</strong> mais <strong>um</strong> orçamento aprovado com a compra do voto <strong>de</strong> <strong>um</strong> cacique local. E, diga-se <strong>de</strong><br />
passagem, em plena crise internacional.<br />
A ausência <strong>de</strong> recepção oficial ao Dalai Lama – e, sobretudo, os atabalhoados esforços para<br />
emendar o erro – <strong>de</strong>ve-se a <strong>um</strong>a coisa muito simples: a subserviência à República Popular da<br />
China. Nada <strong>de</strong> novo, no fundo: Macau – que não era tecnicamente <strong>um</strong>a colónia – foi oferecido<br />
a quem não garantia a continuida<strong>de</strong> da <strong>de</strong>mocracia mas havia garantido o enriquecimento <strong>de</strong><br />
toda <strong>um</strong>a classe política e t<strong>é</strong>cnica portuguesa nas d<strong>é</strong>cadas <strong>de</strong> 80 e 90. Tudo o resto são <strong>de</strong>sculpas<br />
fracas: invocar problemas <strong>de</strong> protocolo por não ser o Dalai Lama <strong>um</strong> chefe <strong>de</strong> Estado; ou<br />
recorrer a arg<strong>um</strong>entos puristas sobre o reconhecimento implícito da soberania Chinesa sobre o<br />
Tibete, por temos relações diplomáticas com a primeira.<br />
O que mais choca neste caso <strong>é</strong> que toda a gente sabe que a República Popular da China <strong>é</strong> <strong>um</strong>a<br />
ditadura. Na melhor tradição estalinista, o regime Chinês usa a <strong>de</strong>sculpa do “comunismo” para<br />
po<strong>de</strong>r exercer a repressão, a censura, a pena <strong>de</strong> morte e mobilizar quase gratuitamente a sua<br />
força <strong>de</strong> trabalho. Simultaneamente, em certas partes do país, cria autênticos casinos <strong>de</strong><br />
capitalismo ultra-liberal. Maior cinismo será difícil <strong>de</strong> encontrar. Ora, governos como o<br />
português gostam muitíssimo <strong>de</strong> se arvorar em paladinos da liberda<strong>de</strong> e da <strong>de</strong>mocracia. Do que<br />
resta da infeliz experiência do socialismo real, a Coreia do Norte faz as páginas dos jornais<br />
graças ao carácter trágico-cómico da sua ditadura <strong>de</strong> opereta. Já Cuba, o outro sobrevivente, <strong>é</strong><br />
alvo dos maiores ataques por parte <strong>de</strong> quem acha que a <strong>de</strong>mocracia triunfou em todo o mundo<br />
menos ali (sim, porque a <strong>de</strong>mocracia está viva e recomenda-se no Sudão e em Angola, na<br />
Malásia e na China...). De facto, atacar os fracos não custa. Na actual conjuntura, os piedosos<br />
<strong>de</strong>mocratas oci<strong>de</strong>ntais que tanto gostam <strong>de</strong> apelidar meio mundo <strong>de</strong> anti-americano e<br />
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