Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
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fazer e, simultaneamente, <strong>de</strong>vem ser auxiliados se se provar que a sua atitu<strong>de</strong> foi motivada por<br />
razões económicas. Os empregadores <strong>de</strong> crianças <strong>de</strong>vem ser punidos, ponto final. E ao Estado<br />
<strong>de</strong>vemos todos exigir que o trabalho infantil acabe, pondo as crianças na escola on<strong>de</strong> (espera-se)<br />
adquiram as capacida<strong>de</strong>s para exercerem o po<strong>de</strong>r da cidadania.<br />
Caso contrário, os jornais estrangeiros largarão o tema das re<strong>de</strong>s pedófilas e começarão a<br />
escrever sobre <strong>um</strong> país <strong>de</strong> “pedófobos”, algures nos confins da Europa. Um país pequenito,<br />
on<strong>de</strong> a caramelização das crianças vestidas <strong>de</strong> anjinhos vai junta com a exploração da sua força<br />
<strong>de</strong> trabalho.<br />
Uma questão <strong>de</strong> confiança<br />
(Público, 22.09.96)<br />
N<strong>um</strong>a entrevista concedida ao Expresso, Francis Fukuyama apresentou as teses do seu livro<br />
“Confiança”. De seguida, foi a vez <strong>de</strong> Jos<strong>é</strong> Carlos Espada escrever sobre a confiança como a<br />
característica principal <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>s civis fortes. Não vou <strong>de</strong>bater as i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> <strong>um</strong> ou outro,<br />
muito menos as virtu<strong>de</strong>s ou os <strong>de</strong>feitos do liberalismo. Compete-me mais fazer a etnografia do<br />
estado das coisas, ouvir e ler os sinais. Tenho quatro exemplos que têm tudo a ver com a<br />
confiança. Ou a falta <strong>de</strong>la.<br />
Duas amigas estrangeiras visitaram-me recentemente. Vinham d<strong>um</strong> pequeno país das Caraíbas,<br />
consi<strong>de</strong>rado como terceiro-mundista pelas cabeças mais duras. No dia a seguir à sua chegada<br />
fomos ao banco para comprarem escudos. Elas apresentaram ao empregado <strong>um</strong> conjunto <strong>de</strong><br />
notas <strong>de</strong> dólares norte-americanos e pediram-lhe que realizasse o respectivo câmbio. O senhor<br />
pediu-lhes o passaporte. Elas olharam para mim como dois cachorrinhos assustados. E eu<br />
revolvi os olhos como <strong>um</strong> dono que vê o cão <strong>de</strong>positar os seus <strong>de</strong>jectos no sítio errado. Neste<br />
caso, o cão era o empregado. Ou seria o meu país? Elas explicaram ao empregado que não<br />
andavam com passaporte pois não estavam habituadas a terem <strong>de</strong> trazer i<strong>de</strong>ntificação consigo. E<br />
que era ridículo apresentar o passaporte para trocar dinheiro. Mais: nunca lhes tinha sido pedida<br />
i<strong>de</strong>ntificação nos bancos dos países que tinham visitado recentemente. E em casa – <strong>um</strong>a excolónia<br />
britânica – nem sequer existia bilhete <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>.<br />
É <strong>um</strong> caso típico <strong>de</strong> falta <strong>de</strong> confiança. O cidadão <strong>é</strong> obrigado a provar que <strong>é</strong> ele mesmo. É<br />
obrigado a <strong>de</strong>ixar o seu rasto doc<strong>um</strong>ental por todo o lado. E <strong>é</strong> sempre seu o ónus <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />
hipot<strong>é</strong>tica culpa. Mas muita sorte tive eu. As minhas amigas foram-se embora antes dos<br />
acontecimentos estivais com os ciganos <strong>de</strong> Oleiros. Perdão: com os habitantes <strong>de</strong> Oleiros, <strong>um</strong>a<br />
vez que o problema <strong>é</strong> <strong>de</strong>les, não dos ciganos. Fui poupado à vergonha <strong>de</strong> ter <strong>de</strong> explicar às<br />
minhas amigas o que raio se estava a passar. O que se passou po<strong>de</strong> ser entendido como <strong>um</strong> caso<br />
<strong>de</strong> falta <strong>de</strong> confiança (al<strong>é</strong>m <strong>de</strong> racismo puro e simples). O tipo <strong>de</strong> reacção em Oleiros <strong>é</strong> já <strong>um</strong>a<br />
tradição entre as populações que estão longe das se<strong>de</strong>s do po<strong>de</strong>r e a quem estas não ligam<br />
patavina. Se a isto juntarmos a ausência doutros “po<strong>de</strong>res” (educação, exposição à diversida<strong>de</strong>,<br />
cidadania), percebe-se o mecanismo do bo<strong>de</strong> expiatório: bate no mais fraco já que não po<strong>de</strong>s<br />
bater no mais forte. É claro que isto não serve <strong>de</strong> <strong>de</strong>sculpa para os actos, nem <strong>é</strong> a “socieda<strong>de</strong>” a<br />
única culpada. Quer apenas dizer que certas formas <strong>de</strong> exercer o po<strong>de</strong>r po<strong>de</strong>m gerar o racismo.<br />
Igualmente assustadores foram os arg<strong>um</strong>entos <strong>de</strong> alguns bem-pensantes: ouve quem dissesse<br />
que “os casos <strong>de</strong> tráfico <strong>de</strong> droga não ajudam nada à inserção dos ciganos”. É como <strong>de</strong>sconfiar<br />
d<strong>um</strong>a pessoa e do seu dinheiro porque ela não apresenta o passaporte.<br />
Depois o Verão explodiu, não em fogos mas em crimes. Acho que alguns responsáveis têm<br />
razão quando dizem que o que surpreen<strong>de</strong> <strong>é</strong> a natureza dos crimes. Se bem me lembro, a gran<strong>de</strong><br />
maioria teve a ver com conflitos que, normalmente, po<strong>de</strong>riam ser resolvidos em tribunal,<br />
quando não mesmo atrav<strong>é</strong>s <strong>de</strong> mecanismos <strong>de</strong> diálogo. O facto <strong>de</strong> não terem sido resolvidos<br />
<strong>de</strong>ssa forma revela muito sobre o estado da (<strong>de</strong>s)confiança. A cruelda<strong>de</strong> requintada ou<br />
<strong>de</strong>sesperada <strong>de</strong> alguns dos crimes estivais <strong>de</strong>monstra como muita gente já não está apenas<br />
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