Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
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afectiva e a vida no ghetto. E recusaram a moleza <strong>de</strong>rrotista e ensimesmada com que muitos<br />
homossexuais <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nham os movimentos sociais pelos seus direitos, n<strong>um</strong>a atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> soberba<br />
provinciana.<br />
Depois do caf<strong>é</strong>, regressava eu à Faculda<strong>de</strong>, quando <strong>de</strong>i por mim a pensar se teria conseguido<br />
aguentar os tribunais, as acusações torpes, os raptos, as manipulações, as esperas, os volte-faces,<br />
os regressos à estaca zero, a <strong>de</strong>struição do sentido <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong> calma e normal. Penso que não.<br />
Mas, afinal <strong>de</strong> contas, não tenho filhos.<br />
O mundo <strong>é</strong> <strong>um</strong>a prisão<br />
(Público, 31.03.96)<br />
“Ir parar à ca<strong>de</strong>ia” <strong>é</strong> <strong>um</strong>a expressão que invoca noções morais como pecado, expiação,<br />
sacrifício. Não <strong>é</strong> por acaso que se diz “c<strong>um</strong>prir <strong>um</strong>a pena”. Lembramo-nos logo <strong>de</strong> outras<br />
“prisões”, como os tabefes apanhados na infância, ser-se fechado no quarto, ou brincar aos<br />
polícias e ladrões. A literatura está cheia <strong>de</strong> reflexões sobre as prisões como via sacra para<br />
expiar <strong>um</strong>a asneira, ou <strong>de</strong> figuras exemplares que se fazem a si mesmas na prisão, do con<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Montecristo a Papillon. Por vezes, transmitindo a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> <strong>um</strong> castigo injusto, da lei como<br />
instr<strong>um</strong>ento dos “ricos e po<strong>de</strong>rosos”. Para o homem da rua a coisa <strong>é</strong> mais simples: o castigo <strong>é</strong> o<br />
sofrimento; e o sofrimento – como o trabalho – enrijece.<br />
São i<strong>de</strong>ias complexas, at<strong>é</strong> contraditórias, porque a prisão se constrói como as avessas da vida<br />
em liberda<strong>de</strong>. São estas i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> “castigo” e “inversão” que triunfam na moralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sensocom<strong>um</strong>:<br />
os presos têm <strong>de</strong> sofrer e não há justificação para que não sofram. “É para isso mesmo<br />
que lá estão”. Não, não <strong>é</strong>. E <strong>é</strong> estúpido (não há outro nome) quem acusa os presos <strong>de</strong> estarem<br />
“para ali regalados, com televisão e tudo”. Isto <strong>de</strong>monstra a ignorância do que <strong>de</strong>ve ser a pena<br />
<strong>de</strong> prisão n<strong>um</strong>a socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>mocrática. Ela consiste na privação da liberda<strong>de</strong>. Ponto parágrafo.<br />
Já <strong>de</strong> si <strong>é</strong> <strong>um</strong> enorme castigo, e <strong>é</strong> espantoso que a maior parte <strong>de</strong> nós não compreenda o que isso<br />
significa. O que significa ver TV atrás das gra<strong>de</strong>s.<br />
Isto leva a que se aceite a barbarida<strong>de</strong> <strong>de</strong> retirar aos presos todos os outros direitos <strong>de</strong> cidadania.<br />
Diria mesmo: para muitos gente, os presos não são cidadãos. Estão fora do mundo real, logo<br />
estão fora das suas regras. Se o homem da rua não tem o direito <strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r esta i<strong>de</strong>ia, muito<br />
menos o tem a administração da justiça e das prisões. Um preso, repito, só está privado <strong>de</strong><br />
liberda<strong>de</strong>. De resto, <strong>de</strong>ve po<strong>de</strong>r votar, ler, ver TV, receber a família, correspon<strong>de</strong>r-se livremente,<br />
exprimir <strong>um</strong>a opinião, ser membro <strong>de</strong> <strong>um</strong> clube ou associação, e por aí fora. Assim como tem o<br />
direito <strong>de</strong> não ser discriminado <strong>de</strong>ntro da prisão e <strong>de</strong> ver respeitados os seus direitos<br />
fundamentais. Não <strong>é</strong> isso que acontece, e toda a gente parece achar natural. A questão resi<strong>de</strong> no<br />
seguinte: para al<strong>é</strong>m da privação da liberda<strong>de</strong>, que fazer?<br />
Resposta: garantir que a “pena” seja <strong>um</strong>a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> renovação. Não a renovação “moral”<br />
dos heróis romanescos. Mas sim escolarização, cultura, aprendizagem profissional e da<br />
cidadania, bem como experimentações com regimes alternativos <strong>de</strong> c<strong>um</strong>primento <strong>de</strong> penas.<br />
Começando pela criação <strong>de</strong> <strong>um</strong>a mini-socieda<strong>de</strong> prisional em que os princípios <strong>de</strong> “cá <strong>de</strong> fora”<br />
sejam aplicados e aprendidos. Em vez disso, que se fez? Permitiu-se a sobrelotação, com <strong>um</strong>a<br />
população punida, sobretudo, pelo tráfico <strong>de</strong> droga. E que <strong>é</strong> duplamente punida: cá fora, pela<br />
condição social ou <strong>é</strong>tnica; lá <strong>de</strong>ntro, pela mesma razão. Assim se criaram as mafias internas –<br />
sendo que <strong>um</strong>a mafia <strong>é</strong> por <strong>de</strong>finição <strong>um</strong> esquema alternativo para provi<strong>de</strong>nciar o que não se<br />
arranja por direito.<br />
Com tudo isto o Estado pactua: tem-se direito a <strong>um</strong>a tarefa melhor ou a <strong>um</strong>a cela individual se<br />
se pagar por <strong>de</strong>baixo da mesa. As drogas circulam – o que só po<strong>de</strong> acontecer com a conivência<br />
das autorida<strong>de</strong>s – e <strong>de</strong>spreza-se o direito a ser tratado da <strong>de</strong>pendência. Toda a gente sabe que<br />
nem, pelo menos, se distribuem seringas e preservativos. A prisão <strong>é</strong> <strong>um</strong> mundo <strong>de</strong><br />
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