13.04.2013 Views

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

O futebol dá-me cabo dos nervos<br />

Não creio alg<strong>um</strong>a vez ter comentado a s<strong>é</strong>rio o futebol. Por <strong>um</strong> lado, porque o assunto não me<br />

interessa, ponto. Por outro, porque acho que o fenómeno do futebol atingiu proporções<br />

perigosas para a sanida<strong>de</strong> mental e social dos habitantes e do país. Faço questão em recusar<br />

conversar sobre futebol, como atitu<strong>de</strong> afirmativa contra o que consi<strong>de</strong>ro ser mesmo alienante,<br />

escuso, mafioso e imoral. Creio mesmo que este país precisa <strong>de</strong> <strong>um</strong>a lavagem que passe lixívia<br />

sobre presi<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> clubes, presi<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> câmaras, traficantes <strong>de</strong> drogas e armas e pessoas<br />

portadoras <strong>de</strong> gravíssimo atraso civilizacional.<br />

No entanto, como antropólogo, sei (ou creio saber) o que <strong>é</strong> o futebol, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter lido análises<br />

<strong>de</strong> colegas como Bromberger ou Archetti. Percebo como o clubismo introduz <strong>um</strong>a lógica <strong>de</strong><br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> que atravessa as divisões <strong>de</strong> classe ou i<strong>de</strong>ologia; como ajuda a consolidar i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s<br />

locais e regionais; como discursa sobre a possibilida<strong>de</strong> utópica <strong>de</strong> qualquer <strong>um</strong> triunfar na vida,<br />

sobretudo os pobres, usando o seu corpo e o <strong>de</strong>senrrascanço; percebo que <strong>é</strong> <strong>um</strong>a performance<br />

ritual sobre o carácter aleatório da vida e da distribuição <strong>de</strong> sucessos e insucessos; e percebo as<br />

projecções, quer masculinas, quer pessoais, quer sociais, sobre jogadores, equipas e selecções<br />

nacionais. Mas tamb<strong>é</strong>m como antropólogo percebo o que <strong>é</strong> a mutilação genital em África e nem<br />

por isso a subscrevo. A cidadania sobrepõe-se à compreensão. Nisto e em tudo.<br />

Parece, então, que existe <strong>um</strong> jogador chamado Deco, <strong>de</strong> origem brasileira, que se naturalizou<br />

português. Parece igualmente que o treinador (ou seleccionador, não conheço a orgânica da<br />

coisa), que <strong>é</strong> brasileiro, o escolheu para integrar a selecção nacional. Parece ainda que Figo, que<br />

<strong>é</strong> português, veio dizer que Deco não <strong>de</strong>veria integrar a selecção porque <strong>é</strong> português apenas “na<br />

burocracia” e não será capaz <strong>de</strong> “sentir o hino nacional”. Consta tamb<strong>é</strong>m que a SIC fez disso<br />

<strong>um</strong>a gran<strong>de</strong> coisa, com sondagens aos “portugueses” que terão revelado estar a maioria <strong>de</strong><br />

acordo com Figo.<br />

É giro: trata-se do mesmo Figo que os catalães começaram a maltratar quando foi para Madrid;<br />

o mesmo Figo que não percebeu nada do nacionalismo catalão. Pu<strong>de</strong>ra: o bom nacionalista <strong>é</strong> o<br />

que não reconhece o nacionalismo dos outros. O bom estúpido tamb<strong>é</strong>m.<br />

Não vou nem referir o paradoxo <strong>de</strong> o treinador ser brasileiro e ningu<strong>é</strong>m pôr isso em causa. Não<br />

vou sequer referir o facto <strong>de</strong> a brasilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uns e a portugalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> outros serem sempre e<br />

necessariamente burocráticas. O que tudo isto revela <strong>é</strong> que, em Portugal, os sentimentos mais<br />

crus manifestam-se <strong>de</strong> forma escusa e <strong>de</strong>sviada. Não temos partidos ou movimentos racistas,<br />

xenófobos ou nacionalistas. Mas o racismo, a xenofobia e o nacionalismo são expelidos por<br />

tubos <strong>de</strong> escape como o PP, os “reality shows” ou o futebol, em pequenos psicodramas,<br />

pequenas performances, pequenos episódios ritualizados em que a “coisa” aparece. Em s<strong>um</strong>a, o<br />

mundo do futebol c<strong>um</strong>pre a sua função <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> metáfora da socieda<strong>de</strong> e dos seus instintos<br />

mais básicos.<br />

Regressada <strong>de</strong> Itália, <strong>um</strong>a amiga minha vinha entusiasmada com a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ban<strong>de</strong>iras nas<br />

janelas das cida<strong>de</strong>s daquele país, ban<strong>de</strong>iras apelando à paz. Não se falava <strong>de</strong> outra coisa. Ao<br />

chegar cá ligou a TV e o locutor atirou-lhe à cara que em Portugal não se falava <strong>de</strong> outra coisa<br />

que não <strong>de</strong>ste episódio futebolesco <strong>de</strong> nacionalismo anão. Se isto continua assim, só resta<br />

mesmo o gesto “burocrático” <strong>de</strong> pedir outra nacionalida<strong>de</strong> qualquer.<br />

Haverá ainda paciência para tentar “compreen<strong>de</strong>r” tudo isto? Não. Figo, a maioria dos<br />

inquiridos pela SIC e a dita são <strong>um</strong>a merda nacionalista e retrógrada. E, já agora, o hino<br />

português <strong>é</strong> <strong>um</strong>a cançoneta inenarravelmente feia. Prontos, como se diz por aí.<br />

A SIC dá-me cabo dos nervos<br />

159

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!