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Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

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Mas foi sol <strong>de</strong> pouca dura. Lembro-me <strong>de</strong> atravessar o túnel que liga as cabines <strong>de</strong> portagem,<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> o director nos ter dado as instruções para a noite. Parecia coisa <strong>de</strong> treinador e<br />

futebolistas. Éramos <strong>um</strong>a equpa e íamos ganhar aquela porcaria em dois tempos. Na cabine,<br />

organizei os trocos, liguei a maquinaria, respirei fundo e n<strong>um</strong> instante já estava ali o primeiro<br />

carro. E pensava eu que já tinha recuperado! Mal começaram as buzina<strong>de</strong>las, <strong>de</strong>u-me assim<br />

como que <strong>um</strong>a tontura. Os GNR eram mais que as mães e puseram-me nervoso. Os jornalistas<br />

pareciam putos com gelados na mão, a gritarem que não era <strong>de</strong> chocolate que queriam, era <strong>de</strong><br />

morango. O director aparecia, vindo do túnel como <strong>um</strong>a toupeira e mandava-me ter sangue frio.<br />

Sangue frio! Na cabine do lado, a Clotil<strong>de</strong> estava ver<strong>de</strong> e não era dos n<strong>é</strong>ons da dita Via. As<br />

buzina<strong>de</strong>las continuavam. Era <strong>um</strong>a invasão <strong>de</strong> putos. Quando <strong>um</strong> espertinho n<strong>um</strong> Seat Ibiza<br />

(que eu ainda por cima conheço lá do bairro: <strong>é</strong> <strong>um</strong> sportinguista do pior) me <strong>de</strong>u <strong>um</strong> saco com<br />

moedas <strong>de</strong> <strong>um</strong> escudo, perdi as estribeiras. Chamei-lhe filho da puta e <strong>de</strong>i-lhe <strong>um</strong> estalo. A<br />

GNR veio logo a correr: agarrei-me à portinhola e corri-os a pontap<strong>é</strong>. Por cima <strong>de</strong>les já havia<br />

<strong>um</strong>a data <strong>de</strong> jornalistas: enfiei-lhes os microfones pelas goelas. Ao mesmo tempo, o director<br />

aparecia do buraco, mas como tenho dois p<strong>é</strong>s, enquanto <strong>um</strong> acertava no peito d<strong>um</strong> guarda, o<br />

outro esmagava o director como <strong>um</strong>a barata. Depois, flipei.<br />

É claro que fui <strong>de</strong>spedido. Os miúdos já mudaram para outra brinca<strong>de</strong>ira qualquer. A minha<br />

mulher amantizou-se com o sportinguista. O pior <strong>é</strong> os outros malucos (perdão: <strong>de</strong>scompensados)<br />

do hospital, que não param <strong>de</strong> buzinar. Se pu<strong>de</strong>sse votar, não votava mais no Cavaco.<br />

As luzes da cida<strong>de</strong><br />

(“Nem Mais”, Jornal da campanha <strong>de</strong> Jorge Sampaio, Janeiro 1995)<br />

Um dos erros do actual imaginário político <strong>é</strong> dizer que <strong>um</strong> bom presi<strong>de</strong>nte <strong>é</strong> aquele que mais se<br />

parece com <strong>um</strong> rei. Isto <strong>é</strong>, aquele que represente o país intemporal, que seja o seu símbolo e<br />

trate os seus súbditos como <strong>um</strong> rebanho <strong>de</strong> filhos. No fundo, aquele que nos igualiza a todos<br />

segundo o <strong>de</strong>nominador com<strong>um</strong> <strong>de</strong> sermos todos portugueses. Ora, ser português une tanto as<br />

pessoas entre si como a palavra vegetal une <strong>um</strong>a batata e <strong>um</strong>a flor carnívora. É <strong>um</strong> sentimento<br />

simpático quando se houve o hino nacional n<strong>um</strong> jogo <strong>de</strong> futebol contra estrangeiros mas,<br />

reconheçamos, não <strong>é</strong> <strong>de</strong>cisivo para a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> das pessoas. É que esta <strong>é</strong> muito mais<br />

polifacetada: <strong>é</strong> <strong>um</strong>a na vida amorosa, outra na vida familiar, outra no trabalho, outra nos gostos,<br />

política, períodos da vida, at<strong>é</strong> dias... Um presi<strong>de</strong>nte da república <strong>de</strong>ve representar, isso sim, o<br />

estado das coisas (e o estado do <strong>de</strong>sejo) n<strong>um</strong>a certa conjuntura do país. A eleição <strong>de</strong> <strong>um</strong><br />

indivíduo conservador, aflito, e com a mania da perseguição revelará <strong>um</strong> país que passa por <strong>um</strong><br />

período com essas características. E vice-versa no caso <strong>de</strong> <strong>um</strong> presi<strong>de</strong>nte com as qualida<strong>de</strong>s<br />

contrárias. Hoje. em Portugal, a maioria da população vive em meio urbano. E o meio urbano<br />

concentra essa coisa que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os anos sessenta se chama juventu<strong>de</strong>. Esta cresce já fora dos<br />

limites (e das vantagens, está certo) do mundo rural e tradicional. Cresce no meio do<br />

caleidoscópio <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s. Nas luzes da cida<strong>de</strong>, essa imagem do projecto da <strong>de</strong>mocracia<br />

mo<strong>de</strong>rna. A sua aspiração legítima (espero que o seja) será viver n<strong>um</strong> meio em que a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> cada <strong>um</strong> se possa <strong>de</strong>senvolver sem atilhos e sem que seja preciso esmagar as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s dos<br />

outros à sua volta, mas antes sendo solidário. Vendo nos outros <strong>um</strong>a luta no fundo semelhante à<br />

sua. Então sim, ser português será motivo <strong>de</strong> orgulho, resultado <strong>de</strong> <strong>um</strong>a construção nossa e não<br />

<strong>de</strong> <strong>um</strong>a etiqueta. <strong>Este</strong> projecto – difícil e complexo – <strong>é</strong> o projecto mo<strong>de</strong>rno, que em Portugal não<br />

se po<strong>de</strong> dizer que esteja ultrapassado. Um presi<strong>de</strong>nte para os últimos anos do s<strong>é</strong>culo, no meio da<br />

confusão semi-rural do Portugal urbano, ou da <strong>de</strong>struição no campo urbano-<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, <strong>de</strong>verá<br />

simbolizar e dar voz aos anseios <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> e cidadania. Tudo igual, nada diferente – seria<br />

<strong>um</strong> bom slogan para a campanha <strong>de</strong> Cavaco. Quanto à <strong>de</strong> Jorge Sampaio, <strong>é</strong> pena que já algu<strong>é</strong>m<br />

tenha o copyright do “todos iguais, todos diferentes”. É que <strong>é</strong> mesmo isso que está em causa.<br />

Príncipes Reais<br />

(in<strong>é</strong>dito, 1997)<br />

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