Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
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esultado <strong>de</strong>sta transformação está a ser (mais do que foi) a fragmentação do processo<br />
produtivo: as mercadorias são feitas aos pedaços em diferentes lugares, a fábrica que produz,<br />
distribui e publicita já não existe como unida<strong>de</strong> orgânica, as empresas não <strong>de</strong>vem obediência<br />
nem fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> a Estados-nação, e os trabalhadores não po<strong>de</strong>m nem unir-se nem criar culturas<br />
<strong>de</strong> trabalho baseadas na convivência.<br />
Esta tendência está a criar <strong>um</strong> mundo peculiar. Já não <strong>é</strong> o mundo das colónias produzindo<br />
mat<strong>é</strong>rias primas, e das metrópoles produzindo manufacturas. Já não <strong>é</strong> o mundo da<br />
correspondência absoluta entre po<strong>de</strong>rio político-militar e po<strong>de</strong>rio económico. Já não <strong>é</strong> o mundo<br />
do crescimento universal <strong>de</strong> <strong>um</strong>a classe m<strong>é</strong>dia amparada pelas políticas previ<strong>de</strong>ntes estimuladas<br />
pelos movimentos sindicais e pelas social-<strong>de</strong>mocracias. É o mundo da pura e simples exclusão<br />
<strong>de</strong> <strong>um</strong>a enorme percentagem da h<strong>um</strong>anida<strong>de</strong>, quer fora dos principais centros económicos, quer<br />
<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>les. É o mundo da <strong>de</strong>sregulamentação, em que as chamadas conquistas sociais são<br />
postas em causa on<strong>de</strong> foram conquistadas e nem chegam a ser implementadas em gran<strong>de</strong> parte<br />
do globo. Gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong>stes problemas <strong>de</strong>vem-se ao crescente divórcio entre a produção, a<br />
ac<strong>um</strong>ulação <strong>de</strong> capital, o Estado e a organização política.<br />
Pensemos <strong>um</strong> pouco no caso português como exemplo. As <strong>de</strong>cisões <strong>de</strong> política económica não<br />
são tomadas em Portugal. São tomadas pelo Banco Central Europeu e por Bruxelas. Significa<br />
isto que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a produção <strong>de</strong> batatas at<strong>é</strong> à <strong>de</strong>finição das taxas <strong>de</strong> juro, a <strong>de</strong>pendência <strong>é</strong> quase<br />
absoluta. Em gran<strong>de</strong> parte isto <strong>de</strong>ve-se à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> a Europa se constituir como bloco face<br />
à única potência militar, industrial e financeira que sobrou do fim do socialismo real: os Estados<br />
Unidos; e face às múltiplas concorrências que advêm da <strong>de</strong>sregulamentação, dos tigres asiáticos<br />
aos paraísos fiscais. Mas a <strong>de</strong>pendência “<strong>de</strong> Bruxelas” <strong>é</strong> apenas a ponta do icebergue, <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />
abertura total à <strong>de</strong>finição dos <strong>de</strong>stinos colectivos por parte <strong>de</strong> interesses sem rosto: isto <strong>é</strong> visível<br />
nas alienações <strong>de</strong> empresas e sectores produtivos, assim como <strong>é</strong> visível na penetração<br />
portuguesa nalg<strong>um</strong>as economias em pior estado.<br />
Quando os centros <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão se <strong>de</strong>slocalizam e fragmentam <strong>de</strong>sta maneira, que sobra da coisa<br />
política, isto <strong>é</strong>, <strong>de</strong> <strong>de</strong>finição das regras segundo as quais queremos viver como colectivo? Sobra<br />
pouco. Sobra a política como forma <strong>de</strong> parasitar os dinheiros públicos, ou como caixa <strong>de</strong><br />
ressonância para interesses económicos. Sobretudo, a política transforma-se n<strong>um</strong>a diatribe entre<br />
pessoas e não entre i<strong>de</strong>ias e projectos. Uma das consequências <strong>de</strong>sta situação <strong>é</strong> a alienação do<br />
cidadão com<strong>um</strong>, que sabe que “dali não virá nada”. Ele (ou ela) tenta, mais que tudo,<br />
“flexibilizar-se”, adaptar-se às novas regras – aceitando contratos a prazo, recibos ver<strong>de</strong>s,<br />
h<strong>um</strong>ilhações várias, ou iludindo-se com a riqueza em concursos televisivos. Não se mobiliza,<br />
não se associa. E nem se apercebe que, nesse processo, todas as conquistas consi<strong>de</strong>radas at<strong>é</strong> há<br />
pouco básicas (e que são conquistas do período social <strong>de</strong>mocrata do capitalismo, que nem<br />
sequer existiu em Portugal), se esf<strong>um</strong>am para não mais voltarem. Se <strong>é</strong> assim em Portugal,<br />
imagine-se em locais piores.<br />
Mas as transformações nunca são unívocas. São sempre campos <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s insuspeitas. É<br />
com<strong>um</strong>, por exemplo, pensar-se que a globalização equivale à homogeneização ou, pior, à<br />
americanização. No entanto, vemos emergir por todo o mundo i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s específicas,<br />
localizadas, <strong>de</strong> reacção. É com<strong>um</strong> pensar-se que a globalização, na sua vertente informativa e<br />
mediática, equivale a <strong>um</strong> mon<strong>um</strong>ental “big brother”. No entanto, vemos por todo o lado<br />
crioulizações, criações híbridas, feitas a partir <strong>de</strong> produtos supostamente homogeneizadores. E<br />
assim como vemos o fim <strong>de</strong> formas clássicas <strong>de</strong> mobilização (sindicatos, partidos), vemos a<br />
pujança dos movimentos ecológicos, <strong>de</strong> mulheres, <strong>de</strong> minorias <strong>de</strong> todo o tipo e feitio, <strong>de</strong><br />
cons<strong>um</strong>idores etc. Isto <strong>é</strong>, <strong>de</strong> novas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s, que emergem na medida em que a relação com a<br />
produção já não <strong>é</strong> o elemento central <strong>de</strong> <strong>de</strong>finição das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s sociais.<br />
Todos estes movimentos são positivos, nobres, libertadores? Não. Vemos emergirem novos<br />
nacionalismos, em gran<strong>de</strong> medida por causa do fim <strong>de</strong> certos Estados-nação centralizadores ou<br />
fe<strong>de</strong>radores, e o que nos mostram não <strong>é</strong> nada bonito. Mas tão pouco todos os efeitos da<br />
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