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Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

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no tipo <strong>de</strong> “voyeurismo” titilante em que as televisões se <strong>de</strong>liciaram ao longo do Verão. Caso<br />

contrário, vamos ter jovens com as vidas duplamente estragadas, como <strong>é</strong> o caso <strong>de</strong> <strong>um</strong>a das<br />

testemunhas n<strong>um</strong> dos doc<strong>um</strong>entários televisivos. Ele não só tinha sido abusado sexualmente<br />

pelo maestro do coro on<strong>de</strong> cantava como, anos <strong>de</strong>pois, vivia obcecado com a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r ele<br />

mesmo vir a ser “pedófilo”. Como se tivesse sido contaminado por <strong>um</strong>a doença e não bastasse o<br />

calvário porque havia passado.<br />

Portugal dos pequenitos.<br />

(Público, 15.09.96)<br />

O governo resolveu tomar mais <strong>um</strong>a iniciativa no sentido <strong>de</strong> controlar o trabalho infantil. Há<br />

anos que ouvimos promessas semelhantes. Há anos que lemos artigos sobre o assunto na<br />

imprensa estrangeira, afectando gravemente os sentimentos da paróquia. Esses artigos surgem<br />

porque nada <strong>de</strong> tão interessante (no sentido <strong>de</strong> grave) acontece em Portugal. Toda a gente já<br />

percebeu. Nós, parece que não, a começar pelo governo: face ao boato <strong>de</strong> que o emprego <strong>de</strong><br />

crianças iria ser criminalizado, o governo veio dizer que “tanto tamb<strong>é</strong>m não”. Porquê? Porque<br />

as consequências seriam perversas, porque a questão <strong>é</strong> mais complexa do que parece. Etc. O que<br />

<strong>é</strong> que eles querem dizer com isto? Querem dizer duas coisas graves. Em primeiro lugar, querem<br />

dizer que esta coisa do trabalho infantil <strong>é</strong> relativa. Em segundo lugar, querem dizer que há<br />

famílias, comunida<strong>de</strong>s, regiões, sectores económicos, que não passam sem o trabalho infantil.<br />

A primeira afirmação preten<strong>de</strong> ser il<strong>um</strong>inada, mas não passa <strong>de</strong> relativismo cultural requentado.<br />

Tanto, que já cheira a relativismo moral. Todos conhecemos o arg<strong>um</strong>ento: “Temos que ver que,<br />

nalguns sítios, o trabalho da criança <strong>é</strong> visto como normal”. Ai <strong>é</strong>? Pois tem <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser. O<br />

trabalho <strong>é</strong> <strong>um</strong>a especialização do corpo, da mente, do tempo e do espaço, <strong>um</strong>a activida<strong>de</strong> feita<br />

<strong>de</strong>ntro d<strong>um</strong> contrato, pressupondo o discernimento <strong>de</strong> direitos e <strong>de</strong>veres e, logo, <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>.<br />

Isto <strong>é</strong> incompatível com pessoas que estão a começar o seu <strong>de</strong>senvolvimento. A segunda<br />

afirmação <strong>é</strong> a menos ass<strong>um</strong>ida, porque <strong>um</strong>a das coisas boas do regime económico e social em<br />

que vivemos (tinha <strong>de</strong> haver alg<strong>um</strong>a) <strong>é</strong> que ele coexiste com <strong>um</strong>a contra-corrente <strong>é</strong>tica que não<br />

vê o lucro, ou sequer a sobrevivência, como a justificação para todas as coisas.<br />

O trabalho infantil (não se trata aqui <strong>de</strong> pedir ao miúdo que aju<strong>de</strong> a pôr a mesa ou a lavar o<br />

carro) <strong>é</strong> <strong>um</strong>a forma <strong>de</strong> abuso. Tal como o abuso físico, psicológico ou sexual das crianças<br />

(incluindo a tão falada pedofilia), o trabalho infantil começa em casa. O escândalo só rebenta<br />

quando se <strong>de</strong>scobrem situações <strong>de</strong> emprego infantil em larga escala nas empresas. Do mesmo<br />

modo como rebenta o escândalo quando se <strong>de</strong>scobrem re<strong>de</strong>s criminais <strong>de</strong> abuso <strong>de</strong> crianças.<br />

Quanto maior for o escândalo sobre o que se passa “na rua”, “no mundo do crime” ou “lá fora”,<br />

menor <strong>é</strong> a atenção ao que se passa no remanso das famílias ou das empresas semi-familiares<br />

organizadas segundo os princípios dos patrocinatos locais. Se as famílias precisam do trabalho<br />

infantil por razões económicas, resolva-se o problema económico das famílias.<br />

O governo não se preocupa verda<strong>de</strong>iramente porque à sua volta medram as atitu<strong>de</strong>s mais<br />

estranhas sobre a infância. Des<strong>de</strong> a noção da criança como <strong>um</strong> anjo inocente, at<strong>é</strong> à noção da<br />

criança como <strong>um</strong> adulto em miniatura a quem se têm <strong>de</strong> cortar os vícios <strong>de</strong>s<strong>de</strong> pequenino, qual<br />

proverbial pepino. Estas noções vão juntas com a atitu<strong>de</strong> paternalista, preocupada em proteger<br />

as crianças nos regaços das instituições caridosas; ou com a atitu<strong>de</strong>, contraditória, <strong>de</strong> imaginar<br />

as famílias como portos <strong>de</strong> abrigo (são por princípio boas) e coutadas (ningu<strong>é</strong>m se <strong>de</strong>ve<br />

imiscuir). É <strong>um</strong> mundo virtual: quando surgem casos graves que <strong>de</strong>sdizem a paisagem perfeita,<br />

são atirados para o domínio da patologia, da figura dos “pais <strong>de</strong>snaturados”.<br />

As crianças não são nem anjos nem adultos-<strong>de</strong>liquentes-em-potência. As crianças são pessoas.<br />

A diferença está no facto <strong>de</strong> serem pessoas que estão (mais do que as outras) em<br />

<strong>de</strong>senvolvimento das suas capacida<strong>de</strong>s: <strong>de</strong> corpo-mente e <strong>de</strong> cidadania. São pessoas sem po<strong>de</strong>r e<br />

sem po<strong>de</strong>r para o terem. Os pais que estimulam o trabalho infantil <strong>de</strong>vem ser proibidos <strong>de</strong> o<br />

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