13.04.2013 Views

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

meus alunos mais inquisitivos e críticos era oficial da GNR, mais preocupado em compreen<strong>de</strong>r<br />

os caçadores <strong>de</strong> cabeças (eu sou antropólogo) do que em cortá-las.<br />

E nem sempre se trata <strong>de</strong> súbitas <strong>de</strong>scobertas, conseguidas porque se entreouviu <strong>um</strong>a conversa<br />

ou porque se escutou <strong>um</strong> mexerico. Às vezes são processos <strong>de</strong> <strong>de</strong>s-cobrimento. Uma amiga <strong>de</strong><br />

<strong>um</strong> amigo foi-me apresentada certo dia; tive mesmo que trabalhar com ela n<strong>um</strong> projecto<br />

com<strong>um</strong>, o que foi difícil pois ela havia-me irritado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início. Tinha tiques <strong>de</strong> “queque”<br />

autoritária que achava que o resto das pessoas só não eram como ela porque não conseguiam. À<br />

medida que o tempo foi passando <strong>de</strong>scobri, espantado (e seduzido, <strong>de</strong>pois) que era <strong>um</strong>a pessoa<br />

mais livre, mais radical, mais ela-mesma do que todos os supostos liberais e radicais que havia<br />

conhecido at<strong>é</strong> então.<br />

A maior parte das vezes erramos na interpretação dos outros. Porque a fazemos a partir <strong>de</strong><br />

preconceitos. Pr<strong>é</strong>-conceitos. Mas muitas vezes nem nos damos ao trabalho <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir o que<br />

po<strong>de</strong> estar por <strong>de</strong>trás <strong>de</strong> <strong>um</strong> sinal exterior ou <strong>de</strong> <strong>um</strong> comportamento <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa (ou ataque). E, no<br />

entanto, ao contrário do que dizem os arautos da homogeneização, cada vez mais o mundo será<br />

assim, e assim serão as pessoas que por ele (e nós) passarem: surpreen<strong>de</strong>ntes. Diz-se nas<br />

ciências sociais que o mundo pós-mo<strong>de</strong>rno <strong>é</strong> <strong>um</strong> mundo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s fragmentadas, em que os<br />

sujeitos não têm <strong>um</strong> centro coeso. De facto, aquilo que eu possa sentir como negro, aquilo<br />

porque anseio, os interesses que <strong>de</strong>fendo, po<strong>de</strong> ser completamente diferente daquilo que sinto,<br />

anseio ou <strong>de</strong>fendo enquanto mulher. E por aí fora.<br />

Infelizmente, ficamo-nos pela teoria. Não nos permitimos passar da análise social para a vida<br />

pessoal e quotidiana. Continuamos a ver no polícia <strong>um</strong> cão <strong>de</strong> fila gorducho, prepotente e, na<br />

melhor das hipóteses, corruptível; quando os há bonitões, simpáticos e honestos. Assim como<br />

por <strong>de</strong>trás <strong>de</strong> <strong>um</strong> <strong>de</strong>putado <strong>de</strong> direita com bigo<strong>de</strong> e escritório <strong>de</strong> advocacia não há<br />

necessariamente <strong>um</strong> lobby dos construtores civis, po<strong>de</strong>ndo haver <strong>um</strong>a tertúlia <strong>de</strong> amantes <strong>de</strong><br />

banda <strong>de</strong>senhada ou <strong>um</strong> grupo <strong>de</strong> motoqueiros. Pior: por <strong>de</strong>trás <strong>de</strong> <strong>um</strong> <strong>de</strong>putado <strong>de</strong> esquerda –<br />

ah, como os imaginamos abertos <strong>de</strong> espírito! – po<strong>de</strong> haver <strong>um</strong> facínora retrógrado que, <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />

“canetada”, assinaria a reclusão no Campo Pequeno <strong>de</strong> todos aqueles a quem chama<br />

reaccionários.<br />

Se a teoria serve para alg<strong>um</strong>a coisa, <strong>é</strong> para nos ajudar a perceber melhor o mundo e a<br />

transformá-lo. Mas isso começa pelo quotidiano. Por isso aconselho vivamente os leitores a<br />

entreterem-se com o meu pequeno exercício: procurem surpresas. Procurem aquela fresta que<br />

todas as pessoas têm escondida ou quase fechada e, como diriam os meus amigos brasileiros,<br />

“fiquem cutucando ela”: po<strong>de</strong> ser que a pose se <strong>de</strong>smanche e a fresta <strong>de</strong>ixe sair <strong>um</strong>a luz imensa.<br />

Ou então, simplesmente, saiam à rua com olhos <strong>de</strong> ver e ouvidos <strong>de</strong> ouvir. Talvez apanhem <strong>um</strong><br />

táxi com música clássica emitida a partir do Montijo.<br />

“Arranjaste lugar?”<br />

(“Jornal Torrejano”, 03.02.00)<br />

Há anos que a conversa mais com<strong>um</strong> no meu local <strong>de</strong> trabalho versa o assunto do<br />

estacionamento dos carros. Ou, melhor dizendo, da falta <strong>de</strong>le (do estacionamento, que carros<br />

não faltam). O mesmo fenómeno, estou certo, repete-se em mil <strong>um</strong> outros locais <strong>de</strong> trabalho das<br />

gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s. É <strong>um</strong> tema <strong>de</strong> começo <strong>de</strong> conversa que está para os portugueses como a<br />

conversa sobre o estado do tempo está para os ingleses. Quem diria que neste país, at<strong>é</strong> há tão<br />

poucos anos <strong>um</strong>a esp<strong>é</strong>cie <strong>de</strong> Albânia católica, carros e estacionamento viriam a ser alimento<br />

para manifestações <strong>de</strong> “carácter nacional”?<br />

Eu próprio me <strong>de</strong>dicava, confesso, a essas conversas. Afinal <strong>de</strong> contas <strong>é</strong> assim que funciona o<br />

senso-com<strong>um</strong>: somos levados, sem nos apercebermos disso, a “encarneirar”, e isso parece-nos<br />

tanto mais natural quanto as circunstâncias parecem confirmar as nossas afirmações. Neste caso,<br />

67

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!