Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
– Os miúdos não racionalizam, mas percebem. É a memória a falar, sou eu aos 38 anos a<br />
retrospectivar as coisas. No liceu, apanhei o 25 <strong>de</strong> Abril logo no primeiro ano com todas as<br />
convulsões que houve. E <strong>de</strong>pois, a puberda<strong>de</strong>. Era <strong>um</strong> mundo já cheio <strong>de</strong> cruelda<strong>de</strong>s. Aquelas<br />
coisas dos grupos <strong>de</strong> rapazes e tal.<br />
– O que quer isso dizer?<br />
– Ui! Eram os rituais <strong>de</strong> iniciação, as pressões. Havia <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os miúdos frescos <strong>de</strong> onze anos at<strong>é</strong><br />
aos matulões que podiam ter 18. Os que chegavam tinham <strong>de</strong> ser iniciados. Na <strong>é</strong>poca havia essa<br />
coisa espantosa da masculinida<strong>de</strong>, que eram as esperas, as amostras. Vocês não tinham isso, as<br />
raparigas?<br />
– Não, mas pres<strong>um</strong>o que o equivalente seria medirmos as maminhas <strong>um</strong>as das outras.<br />
– É esse g<strong>é</strong>nero. Os matulões ficavam à espera que chegassem os novatos, faziam <strong>um</strong> corredor<br />
com pessoas dos dois lados e batiam. Depois, faziam <strong>um</strong>a roda à tua volta e obrigavam a fazer<br />
<strong>um</strong>a amostra. Basicamente, era mostrar a pila para ver como <strong>é</strong> que estava, se já era púbere.<br />
Lembro-me, não sei se <strong>é</strong> fantasia da memória, <strong>de</strong> ver o meu irmão lá no liceu, longe, e <strong>de</strong> ter<br />
<strong>um</strong>a fraqueza <strong>de</strong> irmão mais novo, chamar pelo irmão mais velho, e ele não ligar nenh<strong>um</strong>a.<br />
Eram coisas chatas.<br />
– Mais que chatas, parecem h<strong>um</strong>ilhantes.<br />
– Eram restos <strong>de</strong> <strong>um</strong> liceu elitista, profundamente masculino e com <strong>um</strong>a mistura social muito<br />
gran<strong>de</strong>. Ainda por cima apanhou com o 25 <strong>de</strong> Abril e as estruturas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r foram todas ao ar.<br />
Foi muito divertido sob uns pontos <strong>de</strong> vista, não foi <strong>de</strong> outros. Não sei por que carga <strong>de</strong> água,<br />
optei por <strong>um</strong> dos grupos políticos que tinha menos força no liceu e que era o ódio <strong>de</strong> estimação<br />
dos que tinham mais força. Teve muita pancada, muita violência. Um grupo político, que ainda<br />
existe, o MRPP, era particularmente bom a dar pancada.<br />
– Qual era o seu grupo?<br />
– A UEC, União dos Estudantes Comunistas. Era <strong>um</strong>a coisa civilizadíssima, comparada!, cheia<br />
<strong>de</strong> boas intenções.<br />
– Entrou com que ida<strong>de</strong>?<br />
– Entrei aos 15. É <strong>um</strong>a coisa da minha geração, fomos politizados muito cedo.<br />
– Muitos <strong>de</strong>ram em políticos. Como <strong>é</strong> que você não <strong>de</strong>u?<br />
– Dar em político, no sentido estrito do termo e <strong>de</strong> as pessoas terem carreira, não <strong>é</strong> muito<br />
diferente do dar em advogado ou em não sei o quê. São coisas calculadas e têm a ver com<br />
opções <strong>de</strong> estilos <strong>de</strong> vida. Passam por coisas tão pequeninas: como vou ter que me vestir, como<br />
vou ter que me comportar, at<strong>é</strong> que ponto vou ter liberda<strong>de</strong> nisto ou naquilo, o que simbolizam<br />
essas profissões e que proveitos tiro <strong>de</strong>las. Nesse sentido, a política não me atraiu rigorosamente<br />
nada. Sempre me pareceu ser aquela, ao nível profissional, on<strong>de</strong> há mais controle sobre a vida<br />
<strong>de</strong> <strong>um</strong>a pessoa, e mais exposição naquilo que, ainda por cima, não <strong>é</strong> interessante expor.<br />
– Tamb<strong>é</strong>m já <strong>é</strong> a memória a falar.<br />
– É, <strong>um</strong>a pessoa não pensa nisto na altura. Vai <strong>é</strong> construindo opções <strong>de</strong> vida pelos gostos e pelas<br />
possibilida<strong>de</strong>s que tem. Agora, ser activo politicamente <strong>é</strong> outra coisa. E sou. Tenho estado<br />
metido nalguns projectos, mas nunca com i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> carreira. Porque implica compromissos <strong>de</strong><br />
limitação da consciência que são espantosos.<br />
– Não <strong>é</strong> possível que seja <strong>de</strong> outra maneira? .<br />
– Devia ser.<br />
– Estava a lembrar-me do ministro do Blair, agora por acaso at<strong>é</strong> há mais que <strong>um</strong>,<br />
ass<strong>um</strong>idamente gay.<br />
– Nem estava a falar necessariamente disso.<br />
234