Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
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Não <strong>é</strong> dificil compreen<strong>de</strong>r porque se abstêm os eleitores nas europeias. A União Europeia ainda<br />
<strong>é</strong> vista como <strong>um</strong>a esp<strong>é</strong>cie <strong>de</strong> agência <strong>de</strong> financiamento e o Parlamento Europeu <strong>é</strong> – e com razão<br />
– visto como <strong>um</strong>a estrutura sem verda<strong>de</strong>iro po<strong>de</strong>r legislador. No entanto, para lá <strong>de</strong>stas<br />
evidências, parece estar a instalar-se entre nós <strong>um</strong> discurso perigoso: o da inutilida<strong>de</strong> dos actos<br />
eleitorais e da própria política.<br />
<strong>Este</strong> discurso <strong>é</strong> reforçado pela prática: o instituto do referendo foi morto à nascença, por irresponsabilida<strong>de</strong><br />
do Governo e do Parlamento. Foi mais <strong>um</strong>a machadada na <strong>de</strong>mocracia representativa.<br />
Tamb<strong>é</strong>m o comportamento dos políticos instituídos – rendidos a formas <strong>de</strong> chicana que<br />
aproximam a política do futebol e a <strong>um</strong>a publicida<strong>de</strong> vazia <strong>de</strong> conteúdo – estimula aquilo <strong>de</strong> que<br />
eles tanto se queixam: o alheamento. Ou seja: hoje em dia, quem, como eu, se situa à esquerda,<br />
vê <strong>um</strong> conjunto <strong>de</strong> conquistas dos movimentos sociais progressistas serem postas em causa, da<br />
segurança social à estabilida<strong>de</strong> do emprego, dos direitos laborais à laicida<strong>de</strong> do Estado. Nunca<br />
pensámos, por<strong>é</strong>m, que a própria <strong>de</strong>mocracia representativa – resultado <strong>de</strong>sses movimentos e não<br />
mera imposição “burguesa” –fosse posta em causa. Votar <strong>é</strong> hoje <strong>um</strong>a das poucas formas que<br />
restam <strong>de</strong> exercício <strong>de</strong> <strong>um</strong> contra- po<strong>de</strong>r. Pelo que se po<strong>de</strong>, pelo menos, <strong>de</strong>sconfiar: que<br />
interesses estão por <strong>de</strong>trás da afirmação constante <strong>de</strong> que os cidadãos se afastaram da política<br />
(como se a culpa fosse <strong>de</strong>les)?<br />
As eleições europeias ocorrem n<strong>um</strong> momento crucial do futuro da Europa. A guerra na<br />
Jugoslávia <strong>é</strong>, <strong>de</strong> facto, o começo <strong>de</strong> <strong>um</strong>a nova era, marcada pela transformação total das regras<br />
do direito internacional. A hegemonia norte-americana instala-se no cenário vazio e confuso do<br />
mundo pós-Muro <strong>de</strong> Berlim, enquanto o capital financeiro circula livremente, incontrolável por<br />
qualquer mecanismo aos níveis nacional ou internacional. Os resultados disto far-se-ão sentir ao<br />
nível local: da instabilida<strong>de</strong> do emprego que <strong>de</strong> repente afecta <strong>um</strong>a família, à bomba que nos<br />
po<strong>de</strong> cair em cima quando menos esperamos (e sem que saibamos porquê). Por isso, o nível<br />
regional – no nosso caso, o europeu – ganha <strong>um</strong>a relevância inesperada. É nele que se po<strong>de</strong>m<br />
fazer gran<strong>de</strong>s opções civilizacionais, em torno da paz, do <strong>de</strong>sarmamento, do <strong>de</strong>senvolvimento<br />
sustentado, do pleno emprego, das obrigações sociais dos Estados, dos valores da<br />
multiculturalida<strong>de</strong> e da diferença. Mas isto não se conseguirá enquanto os principais candidatos<br />
ao Parlamento Europeu disserem o contrário do que os seus partidos pensam (os casos <strong>de</strong> Mário<br />
Soares e Pacheco Pereira) ou estiverem com <strong>um</strong> p<strong>é</strong> <strong>de</strong>ntro e outro fora da construção europeia<br />
(os casos <strong>de</strong> Ilda Figueiredo e Paulo Portas).<br />
Estas eleições ocorrem n<strong>um</strong>a conjuntura com três importantes características. A guerra, o auge<br />
da globalização neoliberal e o perigo da “instalação” do PS no Po<strong>de</strong>r, atrav<strong>é</strong>s <strong>de</strong> <strong>um</strong>a política<br />
fulanizada, paternalista e vazia <strong>de</strong> conteúdo simbolizada no regresso <strong>de</strong> Mário Soares. Quem se<br />
posiciona à esquerda começa a fartar-se da atitu<strong>de</strong> do PS como gestor local da globalização e<br />
não vê nenh<strong>um</strong> valor acrescentado n<strong>um</strong>a eventual presidência do PE exercida por <strong>um</strong> Mário<br />
Soares fe<strong>de</strong>ralista e paridário <strong>de</strong> <strong>um</strong> ex<strong>é</strong>rcito europeu; e começa a não se rever no nacionalismo<br />
isolacionista e antieuropeu do PC, agravado pela ambiguida<strong>de</strong> em relação ao regime <strong>de</strong><br />
Milosevic. E, por fim, já não se contenta com o radicalismo auto-satisfeito <strong>de</strong> <strong>um</strong>a extremaesquerda<br />
que relega a intervenção para utópicos amanhãs que cantam. Precisamos <strong>de</strong> começar a<br />
fazer a diferença. E isso po<strong>de</strong>rá começar por novo voto, simultaneamente europeísta <strong>de</strong> esquerda<br />
e refundador do espectro político-partidário nacional.<br />
Timor, Portugal e a esquerda.<br />
(Público, 13.09.99)<br />
Escrevo estas linhas durante os dias <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> e horror do início <strong>de</strong> Setembro <strong>de</strong> 1999.<br />
No dia em que for publicado não sei o que terá sido <strong>de</strong> Timor. Ou o que terá sido <strong>de</strong> nós.<br />
Vestido <strong>de</strong> branco, colado à TSF (em Portugal <strong>um</strong>a estação <strong>de</strong> rádio faz as vezes <strong>de</strong> <strong>um</strong><br />
movimento social), tento organizar a cabeça. Dar razão à emoção. Se a esquerda quer pensar o<br />
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