Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
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O rapaz <strong>é</strong> apenas <strong>um</strong> <strong>de</strong>sses conhecidos do dia-a-dia, da rua, do caf<strong>é</strong> ou do emprego, não<br />
importa. Tinha-me visto na TV e lido nos jornais, achava-me responsável e lúcido (o que fazem<br />
os media...). Pediu-me para falarmos em privado. Acedi: ele estava perturbado e, embora eu não<br />
me consi<strong>de</strong>re nem lúcido nem responsável, ainda me acho minimamamente solidário. A história<br />
<strong>de</strong>le <strong>é</strong> exemplar <strong>de</strong> <strong>um</strong> mal que está enraízado na nossa socieda<strong>de</strong> como <strong>um</strong>a lapa (já direi qual<br />
<strong>é</strong>, <strong>um</strong> pouco <strong>de</strong> paciência).<br />
Como muitos jovens portugueses, o rapaz da minha história tem problemas em encontrar<br />
emprego. Eis senão quando, <strong>um</strong> belo dia conhece <strong>um</strong> senhor com quem estabelece <strong>um</strong>a<br />
simpática relação. Cedo <strong>de</strong>scobre – isto <strong>é</strong>, cedo o senhor lhe dá a enten<strong>de</strong>r – que o dito <strong>é</strong> <strong>um</strong>a<br />
pessoa influente na socieda<strong>de</strong> portuguesa. Tem ligações políticas importantes. Artísticas.<br />
Sobretudo financeiras. E po<strong>de</strong>r. A relação <strong>é</strong>-me contada como <strong>um</strong>a história <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong>: ambos<br />
gostam <strong>de</strong> <strong>um</strong> certo partido <strong>de</strong> direita, ambos gostam <strong>de</strong> certos cantores e estilos <strong>de</strong> música,<br />
ambos são “contra o aborto” (como se não o fòssemos todos...), ambos se dizem católicos e<br />
caritativos. Passado pouco tempo, o senhor dá a enten<strong>de</strong>r que lhe po<strong>de</strong> resolver a vida, pois pelo<br />
seu punho e caneta são tomadas importantes <strong>de</strong>cisões. O rapaz fica radiante: resolver o<br />
problema do emprego, sem esforço e atrav<strong>é</strong>s <strong>de</strong> <strong>um</strong>a amiza<strong>de</strong> – quem po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>sejar melhor?<br />
Eis senão quando o senhor começa a convidá-lo para uns encontros, <strong>um</strong>as festas, a possibilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> conhecer gente famosa da área da política-cançonetismo-religião <strong>de</strong> que ambos são fãs. O<br />
nosso rapaz “<strong>de</strong>sconfia” dos intuitos horizontais dos convites. E fica em pânico. Segundo ele,<br />
não porque “tenha preconceitos”, mas porque, al<strong>é</strong>m <strong>de</strong> “gostar <strong>de</strong> mulheres”, fica com medo <strong>de</strong><br />
não “resolver a sua vida” se recusar os convites. Pensando que todos os homossexuais são<br />
iguais e que eu teria <strong>um</strong>a esp<strong>é</strong>cie <strong>de</strong> conhecimento mágico da mente do “senhor”, pergunta-me o<br />
que <strong>de</strong>ve fazer. Fico abismado. Fico mesmo irritado. E termino a conversa jogando no campo<br />
adversário com <strong>um</strong>a liçãozinha <strong>de</strong> moral: “Você faça o que a sua consciência lhe ditar. Mas o<br />
problema começou quando você aceitou <strong>um</strong> favor, quando você meteu <strong>um</strong>a cunha. É a partir daí<br />
que tudo <strong>de</strong>scamba. Você agora vai ter que seguir o que os seus valores lhe ditarem”.<br />
E chegamos ao tal “mal” <strong>de</strong> que eu falava: a hipocrisia. Claro que o “senhor” <strong>é</strong> bem mais<br />
bisonho do que o rapaz, mas o rapaz não <strong>é</strong> nenh<strong>um</strong> anjo. Ou está a <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> o ser. Ambos<br />
partilham os famosos “valores” do conservadorismo à direita, mas quando o auto-interesse<br />
ultrapassou os alicerces dos valores, quem lhe teve <strong>de</strong> lembrar a importância <strong>de</strong>stes foi o<br />
esquerdista pervertido.<br />
A moral constrói-se nestes pequenos dilemas, não nos gran<strong>de</strong>s enunciados <strong>de</strong> <strong>um</strong> discurso<br />
político, <strong>de</strong> <strong>um</strong>a canção sentimental ou <strong>de</strong> <strong>um</strong> sermão <strong>de</strong> igreja. No fim, espero que o rapaz se<br />
safe. Mas sobretudo que aprenda qualquer coisinha.<br />
Referendar o referendo<br />
(“Jornal da Associação <strong>de</strong> Estudantes do ISCTE”, 1998)<br />
A classe política portuguesa conseguiu recentemente <strong>um</strong> feito extraordinário e infame:<br />
<strong>de</strong>sprestigiar, <strong>de</strong> <strong>um</strong>a penada, a <strong>de</strong>mocracia representativa e a <strong>de</strong>mocracia referendária. Fê-lo<br />
quando do referendo sobre a <strong>de</strong>spenalização do aborto. Como conseguiram matar dois coelhos<br />
<strong>de</strong> <strong>um</strong>a cajadada – ou, melhor, à nascença?<br />
A coisa <strong>de</strong>u-se em três tempos. Primeiro tempo: o parlamento não quis responsabilizar-se e<br />
remeteu a questão para referendo. Disse que era <strong>um</strong> problema <strong>de</strong> “consciência” – como se todos<br />
os problemas políticos não o fossem e como se o <strong>de</strong>bate sobre a vida e os direitos das mulheres<br />
não fossem <strong>um</strong>a questão política. Segundo tempo: o referendo foi tão mal feito, com perguntas<br />
tão mal fornuladas, que a campanha pô<strong>de</strong> seguir os caminhos que os <strong>de</strong>magogos <strong>de</strong> <strong>um</strong> lado e<br />
outro acharam por bem trilhar. O resultado foi a abstenção que conhecemos. Terceiro tempo: a<br />
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