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Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

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H <strong>é</strong> imensamente feliz. Quando acorda, a mulher entreabre os olhos, sorri (ela olha <strong>de</strong> baixo<br />

para cima), e enrosca-se nele, colocando <strong>um</strong>a mão sobre o seu peito. Ele diz, n<strong>um</strong> tom fatalista,<br />

que está na hora <strong>de</strong> ir trabalhar e levanta-se. É certo que se esquece <strong>de</strong> perguntar à mulher como<br />

será o dia <strong>de</strong>la. É <strong>um</strong> assunto <strong>de</strong> que nunca falam, esse do trabalho <strong>de</strong>la. De certo modo, <strong>é</strong> ela<br />

que não quer: gosta mais <strong>de</strong> falar do que <strong>é</strong> preciso fazer com os filhos, com a casa, com os pais<br />

ou com os sogros e as suas infindáveis maleitas. H dá a enten<strong>de</strong>r que tem entre mãos <strong>um</strong><br />

problema grave no escritório e a mulher incentiva-o a ser intransigente. À noite, quando<br />

regressar a casa, dará a notícia <strong>de</strong> que foi bem sucedido, <strong>de</strong> que não baixou a guarda por <strong>um</strong><br />

momento que fosse, que com certeza ficaram a respeitá-lo mais ainda. Será premiado com <strong>um</strong><br />

<strong>de</strong>sejo inusitado da parte da mulher e sentir-se-á ainda mais feliz por isso.<br />

H <strong>é</strong> imensamente feliz. Quando a secretária o trata por senhor doutor e lhe relembra os<br />

compromissos do dia, sente-se ao mesmo tempo <strong>de</strong>spreocupado, livre e po<strong>de</strong>roso: pe<strong>de</strong>-lhe que<br />

cancele meia dúzia <strong>de</strong> tarefas, que adie outras tantas, que chame não sei quem para <strong>um</strong>a<br />

conversa, que não se esqueça <strong>de</strong> encomendar <strong>um</strong>a prenda para a mulher por ocasião do<br />

aniversário <strong>de</strong> casamento. Com <strong>um</strong> sorriso na cara, a secretária transmite-lhe a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que lhe<br />

dá prazer trabalhar para algu<strong>é</strong>m tão en<strong>é</strong>rgico, seguro <strong>de</strong> si e, ao mesmo tempo, tão magnânime.<br />

E justo: nunca tentou seduzir a secretária e sempre evitou correspon<strong>de</strong>r ao charme <strong>de</strong>la. <strong>Este</strong><br />

jogo <strong>de</strong> tentativa e erro, terminando sempre com a recusa <strong>de</strong> H – sabendo que po<strong>de</strong>ria<br />

aproveitar-se se quisesse – tem como curioso <strong>de</strong>sfecho o a<strong>um</strong>ento da admiração <strong>de</strong>la por ele.<br />

H <strong>é</strong> imensamente feliz. Na sequência <strong>de</strong> <strong>um</strong>a reunião mais conflituosa do que o habitual,<br />

conseguiu encostar à pare<strong>de</strong> o colega rec<strong>é</strong>m-chegado <strong>de</strong> outra empresa e que estava convencido<br />

<strong>de</strong> que iria mudar toda a forma <strong>de</strong> funcionamento do grupo. H tratou <strong>de</strong> lhe cortar as vazas. Às<br />

vezes <strong>é</strong> preciso ser <strong>um</strong> bocadinho básico e usar <strong>de</strong> artimanhas com as quais a nossa <strong>é</strong>tica não se<br />

dá muito bem. Mas <strong>é</strong> fácil e inócuo. Na casa <strong>de</strong> banho, no acto displicente <strong>de</strong> urinar, conversase<br />

com o colega do lado. Deixa-se cair <strong>um</strong>a insinuação sobre o arrivista rec<strong>é</strong>m chegado: “Outro<br />

dia fiquei parvo: não <strong>é</strong> que <strong>de</strong>i com o tipo a olhar para mim aqui na casa <strong>de</strong> banho. Ia jurar<br />

que....” E não <strong>é</strong> preciso dizer mais: o colega transformará o <strong>de</strong>slize em piada e outros<br />

transformá-la-ão em boato e a informação crescerá como <strong>um</strong> vírus sem origem <strong>de</strong>finida. Os<br />

homens não são coscuvilheiros.<br />

H <strong>é</strong> imensamente feliz. Quando a empregada da limpeza lhe disse, n<strong>um</strong>a confissão murmurada<br />

enquanto o espanador dançava pelo tampo da secretária, que não conseguia trazer os filhos <strong>de</strong><br />

Cabo Ver<strong>de</strong> porque o governo não <strong>de</strong>ixava, e que lhe saía muito caro comprar e enviar roupas e<br />

rem<strong>é</strong>dios e tantas outras coisas, H telefonou à mulher. Estava n<strong>um</strong>a reunião no escritório <strong>de</strong>la<br />

mas aten<strong>de</strong>u o telefone. H pediu-lhe que juntasse as coisas velhas que estavam na arrecadação, e<br />

no dia seguinte a empregada da limpeza tinha <strong>um</strong>a prenda do senhor doutor H, a quem passou a<br />

tratar por senhor doutor duas vezes, o senhor doutor <strong>é</strong> <strong>um</strong>a santa alma, senhor doutor, Deus lhe<br />

pague.<br />

H <strong>é</strong> imensamente feliz. Há dias em que tudo parece correr bem. O jogo <strong>de</strong> t<strong>é</strong>nis corre bem, com<br />

<strong>um</strong> vitória estrondosa. O jogo do Sporting corre bem, com outra vitória estrondosa e a sensação<br />

<strong>é</strong> extraordinária, como se aqueles onze homens correndo e suando fossem o próprio H<br />

multiplicado, como se os homens e os clubes <strong>de</strong> futebol fossem <strong>um</strong> enorme rizoma, <strong>um</strong><br />

cog<strong>um</strong>elo subterrâneo gigantesco em que cada homem <strong>é</strong> <strong>um</strong>a cabecinha que emerge gostosa e<br />

viril da terra. Em uníssono, como na empresa. Tamb<strong>é</strong>m as compras correram bem: <strong>um</strong>a bicicleta<br />

<strong>de</strong> ginástica fantástica, <strong>um</strong> vinho <strong>de</strong> que ouviu dizer bem a bom preço. Tudo culminado pela<br />

música do terminal do multibanco. O cr<strong>é</strong>dito está sólido e permite fantasiar com <strong>um</strong> novo carro:<br />

mais cilindros, mais dinheiro. Às vezes corre tudo tão bem que at<strong>é</strong> dá para ter <strong>um</strong> encontro<br />

amoroso com <strong>um</strong>a estagiária do escritório (aquela maldosamente conhecida como “o recibo<br />

ver<strong>de</strong>”), conseguir assegurar o seu silêncio e não sentir culpa. Há coisas que estão na natureza<br />

dos homens e o perdão pe<strong>de</strong>-se a Deus.<br />

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