Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
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Delicioso? Talvez. Mas tamb<strong>é</strong>m assustador, quando pensamos nessa <strong>é</strong>poca <strong>de</strong> construção dos<br />
novos Estados-nação nas Am<strong>é</strong>ricas e do colonialismo europeu, em que estava em causa a<br />
“pureza racial”. Para os latino-americanos, tratava-se <strong>de</strong> conseguir construir países <strong>de</strong> tipo<br />
europeu n<strong>um</strong>a paisagem h<strong>um</strong>ana pejada <strong>de</strong> índios ou negros; para os imp<strong>é</strong>rios europeus, tratavase<br />
<strong>de</strong> justificar a usurpação das terras e do trabalho <strong>de</strong> outrem. Era imperioso <strong>um</strong> apartheid<br />
“avant la lettre”: não misturar, para se saber quem manda e quem <strong>é</strong> superior. O horror ao híbrido<br />
e o conceito <strong>de</strong> “raça” consolidaram-se juntos.<br />
Depois da segunda guerra mundial, as teorias raciais per<strong>de</strong>ram vigor e foram substituídas por<br />
<strong>um</strong>a separação radical entre “raça” e cultura. O caso brasileiro <strong>é</strong> exemplar: os que haviam<br />
vaticinado a <strong>de</strong>cadência da nação caso houvesse muita mistura entre brancos e negros viram as<br />
suas i<strong>de</strong>ias substituídas pelo elogio da mistura. Todavia, assim como entre os racistas havia<br />
alguns que achavam que, no caso <strong>de</strong> misturas, o “bom sangue branco” se sobreporia ao “mau<br />
sangue negro”, tamb<strong>é</strong>m entre os <strong>de</strong>fensores da mestiçagem havia os que a encaravam mais<br />
como processo cultural do que <strong>de</strong> mistura <strong>de</strong> “sangues”. Pior: atribuíam sempre aos negros as<br />
características culturais menos consagradas (música, dança, culinária…) e aos brancos as mais<br />
nobres. A literatura brasileira está cheia <strong>de</strong> exemplos (vi<strong>de</strong> Jorge Amado) e, infelizmente,<br />
tamb<strong>é</strong>m o senso com<strong>um</strong>. Racistas ou não, todos partilhavam <strong>de</strong> alg<strong>um</strong> <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong><br />
“branqueamento”.<br />
Admitamos que hoje as coisas são diferentes. A globalização e o seu reverso – o renascimento<br />
das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s particulares – criaram terreno f<strong>é</strong>rtil para os movimentos <strong>é</strong>tnicos <strong>de</strong> vários<br />
matizes. Na ex-Jugoslávia aconteceu o que todos sabemos, em Portugal a Expo construiu-se<br />
com mão <strong>de</strong> obra africana sem direitos e no Brasil a nova classe m<strong>é</strong>dia negra contempla-se em<br />
revistas <strong>de</strong> “black chic” como “Raça Brasil”. Ou seja: os híbridos não triunfaram; o que triunfou<br />
foi a afirmação (e mesmo invenção) <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s at<strong>é</strong> aqui marginalizadas.<br />
Estará, então, o híbrido na moda? Ao nível “racial”, <strong>é</strong> certo que não. Se <strong>um</strong>a cara mestiça faz<br />
sucesso nas passereles, fá-lo por ser exótica: não se reproduz nos comportamentos das pessoas<br />
no momento <strong>de</strong>cisivo em que <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m juntar trapinhos, trocar fluidos e fazer a geração seguinte.<br />
Ao nível <strong>é</strong>tnico, já a coisa <strong>é</strong> diferente: não há como ignorar os bricolages cada vez mais variados<br />
– da “world music” à “fusion food”. Mas não nos iludamos: quando se “bricola” não se produz<br />
necessariamente <strong>um</strong> novo produto sincr<strong>é</strong>tico; antes se reforça a <strong>de</strong>finição dos componentes. Isto<br />
<strong>é</strong> dos pretos, isto <strong>é</strong> nosso; eu junto (alg<strong>um</strong>as coisas…) em mim, mas o que <strong>é</strong> dos pretos há-se ser<br />
sempre dos pretos. Se calhar isto <strong>de</strong>ve-se ao que os antropólogos chamam “mercadorização da<br />
cultura”: at<strong>é</strong> os traços culturais dos povos foram transformados em produtos no mercado, sendo<br />
as formas híbridas o resultado da criativida<strong>de</strong> do cons<strong>um</strong>idor. É triste, mas parece ser verda<strong>de</strong>.<br />
As produções <strong>de</strong> híbridos acontecem, hoje, por respeito a aspectos sociais carregados <strong>de</strong><br />
tensões: as relações entre “raças”, grupos <strong>é</strong>tnicos, g<strong>é</strong>neros e sexos. Mas, por exemplo, a<br />
facilida<strong>de</strong> relativa com que a homossexualida<strong>de</strong> tem vindo a ser aceitada <strong>de</strong>ve-se à <strong>de</strong>finição <strong>de</strong><br />
<strong>um</strong> tipo <strong>de</strong> pessoa: o homem que gosta <strong>de</strong> homens, a mulher que gosta <strong>de</strong> mulheres. A mesma<br />
aceitação já não se dá em relação a quem queira transpor as “fronteiras da Natureza”, como<br />
travestis ou transsexuais. A não ser como espectáculo, durante o tempo <strong>de</strong> duração <strong>de</strong>ste, no<br />
palco, na tela ou na passerele. Veja-se as “drag queens”, coqueluche das discotecas para<br />
heterossexuais….<br />
Curiosamente, há <strong>um</strong>a área da tensão social que tem ficado <strong>de</strong> fora: a das velhas relações <strong>de</strong><br />
classe. Claro que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre ricos e pobres se entregaram ao <strong>de</strong>sporto <strong>de</strong> fazer filhos. Mas<br />
estes ficavam ilegítimos e não se casavam os pais. Hoje, nem sequer se encontram. Ou porque<br />
cada vez mais gente pertence à gelatina social que <strong>é</strong> a “classe m<strong>é</strong>dia” ou porque uns estão no<br />
condomínio privado e os outros no bairro <strong>de</strong> realojamento. E quando surge <strong>um</strong> híbrido <strong>de</strong><br />
classe, como o “novo-rico”, não há moda que o legitime. E, no sentido contrário – o “novopobre”<br />
– a invisibilida<strong>de</strong> <strong>é</strong> total: escon<strong>de</strong>-se em casa comendo salsichas <strong>de</strong> lata para po<strong>de</strong>r pagar<br />
a prestação do carro.<br />
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