Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida
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Rapidamente, várias vozes (incluindo as principais páginas do “Público”) protestaram em coro:<br />
“violação da privacida<strong>de</strong>!” <strong>Este</strong> <strong>é</strong> <strong>um</strong> primeiro nível <strong>de</strong> leitura.<br />
O segundo diz respeito aos juízos <strong>de</strong> valor que logo surgiram sobre aquela família: oriunda <strong>de</strong><br />
Borba, no Alentejo, tratar-se-ia <strong>de</strong> <strong>um</strong>a família <strong>de</strong> comerciantes conservadores e católicos.<br />
Segundo eles, a filha seria <strong>um</strong>a boa rapariga que nunca faria cenas daquelas e a produção teria<br />
garantido que o programa era para todas as ida<strong>de</strong>s e apropriado para emissão à hora do jantar.<br />
Mais: os pais estariam envergonhados, sendo que a mãe nem coragem teria para ir ao<br />
supermercado, tal seria a crítica social em Borba. A filha teria chorado à custa <strong>de</strong> toda a<br />
situação, querendo permanecer no programa para <strong>de</strong>monstrar ser <strong>um</strong>a pessoa íntegra. O segundo<br />
nível <strong>é</strong> fundamental para se enten<strong>de</strong>r este caso. Porque facilmente se po<strong>de</strong>ria ridicularizar <strong>um</strong><br />
casal <strong>de</strong> joalheiros da província preocupado com a reputação <strong>de</strong> <strong>um</strong>a filha habituada ao percurso<br />
escola-igreja-casa. Facilmente se po<strong>de</strong>ria gozar com quem teme a “perdição” na gran<strong>de</strong> cida<strong>de</strong>,<br />
ou os perigos da busca da fama fácil.<br />
Acontece que, a meu ver, tratou-se <strong>de</strong> facto <strong>de</strong> <strong>um</strong>a violação da privacida<strong>de</strong>. E que o direito a<br />
não ter a sua privacida<strong>de</strong> violada se aplica – como <strong>de</strong>veria ser óbvio – a toda a gente. At<strong>é</strong> a<br />
quem – se quis<strong>é</strong>ssemos subscrever o segundo nível <strong>de</strong> leitura – partilhe <strong>de</strong> visões da moralida<strong>de</strong><br />
que possam ser consi<strong>de</strong>radas hipócritas, intolerantes, castradoras ou simplesmente<br />
conservadoras.<br />
Muitas pessoas – as mais “liberais” – comentariam estes factos dizendo que quem anda à chuva<br />
se molha, isto <strong>é</strong>, que quem vai a estes programas sabe no que se mete. Não <strong>é</strong> totalmente<br />
verda<strong>de</strong>. Programas <strong>de</strong>ste tipo assemelham-se a outros produtos que circulam no mercado: eles<br />
são feitos para dar lucro, mesmo que supram necessida<strong>de</strong>s (neste caso, pr<strong>é</strong>mios pecuniários e<br />
fama). Mas tal como existe protecção do cons<strong>um</strong>idor, e tal como o Estado interv<strong>é</strong>m no mercado<br />
para evitar <strong>um</strong>a selva economicamente contraproducente, tamb<strong>é</strong>m estes programas <strong>de</strong>veriam ser<br />
controlados. Não se trata <strong>de</strong> censura por <strong>um</strong>a razão muito simples: estes programas não cabem<br />
na categoria da livre expressão <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias. Cabem n<strong>um</strong>a categoria semelhante aos cigarros, que<br />
têm avisos sobre os perigos para a saú<strong>de</strong>, ou das batatas fritas, que listam calorias, aditivos e<br />
conservantes. Em s<strong>um</strong>a, os concorrentes <strong>de</strong>ste programas não estão necessariamente a dar o seu<br />
consentimento informado.<br />
Outros diriam – os mais “sociológicos” – que a divisão entre o público e o privado está a<br />
<strong>de</strong>saparecer. Têm razão, só que a afirmação aplica-se a <strong>um</strong> <strong>de</strong>terminado domínio e não a outros.<br />
O domínio a que se aplica <strong>é</strong> este: hoje em dia já não se aceita que haja instituições (como a<br />
família) ou relações sociais (como as afectivas e sexuais) que funcionem totalmente fora do<br />
escrutínio público e político, porque são entendidas como políticas elas mesmas, isto <strong>é</strong>,<br />
marcadas por relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r (e, logo, pela possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se transformarem em mais<br />
igualitárias). Para dar <strong>um</strong> exemplo muito simples: <strong>é</strong> por isso que a violência dom<strong>é</strong>stica passou a<br />
ser <strong>um</strong> crime público, <strong>de</strong>nunciável por qualquer <strong>um</strong>, e não algo do foro privado.<br />
Mas a permeabilida<strong>de</strong> cada vez maior entre os campos do público e do privado nada tem a ver<br />
com a invasão da privacida<strong>de</strong>. A privacida<strong>de</strong> diz respeito à intimida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada <strong>um</strong>, tal como ela<br />
<strong>é</strong> <strong>de</strong>finida (<strong>de</strong> múltiplas formas) por cada <strong>um</strong>. Des<strong>de</strong> que aquilo a que se reporta não viole os<br />
princípios do mútuo consentimento informado entre pessoas capazes e autónomas. Outro<br />
exemplo, então: <strong>é</strong> isto que marca a diferença entre a violência dom<strong>é</strong>stica, por <strong>um</strong> lado, e as<br />
práticas sado-masoquistas mutuamente consentidas e <strong>de</strong>sejadas por <strong>um</strong> casal <strong>de</strong> adultos, por<br />
outro.<br />
No caso que nos interessa at<strong>é</strong> po<strong>de</strong>ríamos res<strong>um</strong>ir tudo a <strong>um</strong>a questão bem simples: a quebra da<br />
palavra, quando a produção do concurso televisivo promete <strong>um</strong>a conversa privada e, na volta,<br />
emite a mesma em directo. Mas sabemos que não se trata só disso. Trata-se, isso sim, <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />
nova (i)moralida<strong>de</strong>, em que o fenómeno televisivo e espectacular se impõe sobre quaisquer<br />
outros princípios: eu mostro o que os voyeurs querem ver; e aquilo ou quem eu mostro não se<br />
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